sábado, 30 de novembro de 2013

MURMÚRIOS DO MUNDO V

Louis

Louis e a mulher viajavam no autocarro do sightseeing lá em cima e lá atrás, precisamento ao lado do único lugar vago que eu fui ocupar. Precisava de o usar como uma espécie de boleia, para me deslocar apenas duas paragens e sair o mais próximo possível da High Line que me conduziria o mais perto possível do cais onde se encontrava o meu destino final - o cruzeiro que me transportaria numa das viagens mais fantásticas de Nova Iorque - a Circle Line, em redor de Manhattan e através do cálido final de tarde, o mágico ocaso e a deslumbrante noite.
Mas para lá chegar ... para lá chegar tinha de sofrer um bom bocado. As coisas boas custam. Eu estava, ainda para mais, apreensiva. Tinha que andar imenso, os meus pés estavam cobertos de bolhas e tinha que me aventurar numa zona completamente desconhecida, zona industrial próxima das docas, sem saber que perigos me esperavam. Agora pergunto-me porque raio não me meti num táxi ... Mas também concluo que ainda bem que não o fiz porque fiquei a conhecer mais uma zona da cidade e ganhei uma carapaça de guerra - conquistei mais um bocado da selva completamente sozinha, sem me perder e sem fraquejar.
O guia do autocarro olhara-me desconfiado quando lhe expliquei o shortcut que pretendia fazer. O autocarro não passava perto do cais. Sim, mas eu quero apanhar a High Line e aproveitar para segui-la até o mais perto possível do cais. "I see what you mean.", disse-me, já a ficar conquistado. Mas é uma longa caminhada. Eu sei, respondi-lhe, tenho umas 4 horas para matar, portanto ... "Ok. I'll tell you when to get off." E lá fui eu de boleia até uma esquina onde o autocarro não era suposto parar. Foi o meu presente pela minha esperteza. Uma das formas mais rápidas de se conquistar um nova-iorquino é mostrar-lhe que somos inteligentes e ensinarmos-lhe algo sobre a sua própria cidade. Eles acham que sabem tudo sobre ela, mas ficam sempre quase em êxtase quando conseguem descobrir mais um pormenor insuspeito. Ao contrário de outros cidadãos do mundo, o nova-iorquino não se sentirá ofendido, humilhado ou incomodado. Assimilará este novo dado com alegria e integrá-lo-á no seu conhecimento enciclopédico da cidade para o usar o mais rapidamente possível noutra ocasião.
Subi lá para cima e fui sentar-me ao lado de Louis. Pedi-lhe para me avisar quando ouvisse o guia anunciar nos auscultadores a proximidade da minha paragem e foi assim que começámos a falar. Louis fez-me a pergunta que devia andar a fazer a toda a gente que se cruzasse no seu caminho desde que chegara do Canadá, a sua terra natal ... "Do you know where Timbuctu is?" Respondi-lhe que devia ser na Índia. Ele realmente tinha ares indianos, pensei eu, convencida que aquela era a sua terra. Voltou à carga, com um sorriso maroto: "Do you know where Timbuctu is?" Suspeitei que havia ali um punch qualquer e respondi-lhe Paquistão, com medo de o ofender por não saber onde ficava a sua cidade. Insistiu cada vez mais entusiasmado: "Do you know where Timbuctu is?" Desesperada, respondi-lhe que não sabia, a desviar-me subrreptciamente não fosse o tipo ficar mesmo ofendido com a minha resposta. Eu só tinha duas paragens para descobrir onde raio é que Timbuctu ficava e o tempo estava  esgotar-se. A resposta veio rápida e triunfante: "Timbuctu is after Timbucone and before Timbucthree!" e desmanchou-se numa cascata infernal de gargalhadas, ajudado pela mulher e mais dois companheiros sentados à sua frente. Ok ... Eu avisei que os canadianos eram estranhos ... Continuou a rir-se e a repetir aquilo mais umas dez vezes até lhe perguntar de onde era. "Canada!" Pronto, estava explicado ... Mais concretamente de Toronto. Daí também o leve toque índio das suas feições. Perguntou-me de onde eu era:
"Portugal."
"Where?"
"Portugal!"
"Where?"
"Portugal, near Spain!" ...
"Ah! Spain!"
"No! Portugal. Ronaldo!"
"Ahhhh! Portugal!", deve ser da pronúncia canadiana, que eu nunca consigo perceber em que difere da americana. Dantes a palavra-passe era ou "Amália" ou "Eusébio", agora passou a ser "Ronaldo".
Ufa! Falou-me imediatamente do Douro e que já por diversas vezes quisera lá ir. Disse-lhe que deveria ir o quanto antes porque era um país cheio de diversidade, óptimo tempo, óptima comida e, modéstia à parte, óptimas pessoas. Depois despedi-me rapidamente de Louis quando ele me avisou que o guia estava a chamar-me, não sem antes ter de levar com o "Do you know where Timbuctu is?" acompanhado de mais gargalhadas, mais umas 2 vezes ...
A verdade é que Louis me deu ânimo e constituiu um agradável ainda que estranho ... (canadianos ...) prelúdio para a saga que estava prestes a começar. Andei 10 quarteirões até à High Line, atravessei a dita cuja de uma ponta à outra (aí 1,5 km) e andei mais 1 km até ao rio. A meio do caminho uma das bolhas rebentou completamente e ficou em sangue, a raspar no sapato. Não sei como consegui aguentar aquilo. Ou, por outra, sei. Consegui porque ia ver uma das vistas mais deslumbrantes do mundo, vista com que tinha andado a sonhar desde que lá fora a primeira vez com 17 anos. É só fazer as contas ... E depois ... bom, em Nova Iorque, com bolhas ou sem elas, eu não ando, eu pairo sempre alguns centímetros acima do solo, nas nuvens.

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