Existe um canto lisboeta que é meu e onde não há gente parva. O único, onde me sinto em casa. Começa no Marquês de Pombal, vai pela Avenida da Liberdade fora e desagua na Baixa-Chiado, ramificando-se para a direita, esquerda e novamente para baixo, até ao Largo do Camões, Praça do Comércio e Rua da Madalena.
Esse era o caminho da aventura, quando eu era pequena. Percorri quilómetros com a minha mãe, vezes e vezes sem conta, por essas paragens. Era o caminho da liberdade, da alegria e da descoberta. Era o caminho que fazíamos quando eu não tinha escola e íamos às compras. Buscar roupa, pouca nesses dias. Buscar tecidos, botões, rendas, feiche-eclairs para a avó fazer as suas costuras. Levar sapatos ao sapateiro. Procurar relojoeiros antigos. Descobrir panelas na Pólux. Levar uma boneca ao Hospital de Brinquedos da Praça da Figueira. Procurar lãs coloridas para fazer camisolas. Ir aos Cinemas Tivoli, São Jorge e Condes. Ao oculista da Travessa de Santo Antão. Ao Coliseu assistir ao circo de Natal da Fidelidade. Mais tarde o Centro Comercial Guérin, o primeiro centro comercial da Baixa depois das Galerias do Chiado. Os Grandes Armazéns do Chiado e a R. Garret, cara e inacessível para nós na altura, mas onde a minha mãe gostava de passear e recordar onde ía com a Abuelita quando a mãe tinha dinheiro suficiente para frequentar as lojas exclusivas dessa rua. Nos Grandes Armazéns e quando o meu irmão ia connosco, envergonhava-me porque tinha um tique que era andar atrás de nós a pousar um joelho no chão. A minha mãe ria-se, eu zangava-me de vergonha. As floristas do Rossio. E tantas, tantas, tantas outras lojas e coisas que agora não me recordo.
Ontem andei por lá à procura de lojas de decoração e móveis e lembrei-me que é essa a minha Lisboa. Aí as pessoas não são parvas. São simpáticas, características e educadas. São engraçadas e agradáveis. As simples e as mais sofisticadas. Não as empregadas parvas novas das lojas novas. Essas não são dali, deviam ser expulsas daquela zona. Não pertencem ali, não lhe são nada, não percebem nada. Não são como os dois senhores que estavam na loja de candeeiros e que me fizeram rir e chorar de alegria e nostalgia. Perguntei-lhes o preço de um candeeiro e os senhores, um mais velho e outro gordo e mais novo, provavelmente o neto, reviraram a loja toda à procura da tabela de preços, enquanto murmuravam "Mas onde é que ela pôs isto?" Ri-me com eles, não deles. Ri-me e depois tive vontade de chorar, porque me fizeram lembrar o relojoeiro Sr. Martins, o sapateiro, a Dona Lurdes do talho, na R. de Santa Marta, onde íamos quase todos os dias às compras. O senhor deu-me um cartão da loja e pediu-me muitas desculpas e olhou para mim como os senhores antigos olham para senhoras jeitosas, com educação e uma pontinha de sedução enternecedora.
Tinha-me esquecido que é essa a minha Lisboa. Que nessa Lisboa eu sempre encontrei e ainda encontro ternura.