sábado, 1 de setembro de 2007

MURMÚRIOS DE LISBOA XLII

Chocolate
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Culturgest - Tecto Exterior Lateral
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Um dia vou escrever um romance contigo. Será um romance passado numa plantação de milho, algures no Alabama, numa época felizmente já ultrapassada.
Tu aparecerás sempre sentado exactamente desse modo, como estás sentado no banco do autocarro, à minha frente.
Quase te perdia, velho Chocolate. Quase ... E sabes porquê? Porque ia entretida a observar um Hip Hop Boy da mesma cor que tu, mas que podia ser teu neto. É curioso …
Quando ele saiu, fui apanhada de surpresa muito suavemente. Olhei-te e quase te abandonava. Quase ... Porque quando repousei de novo o olhar em ti, o mundo inteiro ficou subitamente mais nobre, mais digno, mais belo, concentrado em ti.
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Vestias uma camisa azul clara de mangas curtas, umas calças cinzentas de flanela, meias brancas e uns sapatos castanhos de atacadores. E trazias um chapéu de feltro e abas castanho, colocado em cima da tua cabeça já totalmente branca com toda a arte de quem põe esse chapéu exactamente da mesma maneira há décadas e nem precisa já de pensar como vai pô-lo. A tua mão acerta milimetricamente no sítio exacto. Fica-te a matar, o chapéu, mas não precisas que ninguém te diga, eu sei.
No pulso esquerdo trazias um relógio daqueles com correia de metal prateada. Não sei como, mas sei que a tua história será em torno desse relógio. Talvez tenha sido o símbolo da tua liberdade, que usas no pulso orgulhosamente, como outros acenam canudos de doutoramento.
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Nunca mentiste, nunca insultaste ninguém, nunca roubaste, nunca maltrataste, nunca foste insolente ou arruaceiro. Sempre trabalhaste de sol a sol, com honra, suor, músculo e dignidade. Sempre fizeste o que te ordenaram sem um único queixume, uma única hesitação.
Sim, sabes que não foste talvez corajoso como outros, ou aventureiro. Mas só conhecias e desejavas uma coisa. Poderes sentar-te ao final do dia naquela cadeira, descansado e em paz, com as tuas crianças saltitando à tua volta, a tua mulher a cantar na cadeira de baloiço ao teu lado e o sol a pôr-se lá ao fundo, por trás das longas e verdes folhas do milheiral que andaste a debulhar durante o dia.
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E agora, velho Chocolate, passados estes anos todos, o teu rosto ergue-se sobre os ombros com uma nobreza desafectada, deslumbrante. A tua pele de ébano brilha com a saúde e a firmeza de uma vida recta e sem arrependimentos, (que não precisa de cremes nem loções.) E só nas rugas do teu pescoço se notam as tuas 75 primaveras suaves e doces.
Os teus olhos não me conseguem ver. Mas não é porque estejas perdido nos teus pensamentos num egocentrismo fechado, como tantos outros. Não me vêem porque és daquelas raras pessoas sem consciência de si próprias, nem por um único segundo das suas vidas.
Esses olhos intensos e atentos, cheios de vida plena, vêem o fim aproximar-se com a serenidade de um leão majestoso. E pressentem, sem saberem explicar, porque nunca leram nenhum livro a não ser algumas passagens da Bíblia, o que te espera.
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Mas eu, velho Chocolate, olho-te e vejo-as. Já as carregas nas costas. São magníficas. Enormes, da cor da tua pele, castanho chocolate e com a textura das tuas mãos belas, firmes e hábeis - o veludo.
Velho Chocolate, essas asas mereceste-as como muito poucos.

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