sábado, 23 de novembro de 2013

MURMÚRIOS DO MUNDO IV

Zheng

Zheng toca em vários sítios da cidade, mas o seu local preferido é, claro, o Central Park. Ali, rodeado de verde por todo o lado e com a possibilidade de escolher entre vários recantos paisagísticos completamente diferentes, Zheng sente-se mais próximo daquilo que ele imagina seja uma espécie de Paraíso terrestre.
Naquele dia, escolheu o mesmo recanto onde eu acentara finalmente arraiais para descansar e comer um bem merecido e autêntico hot dog nova-iorquino com mostarda, que me fora vendido pela metade do preço daquele que adquirira 24 horas antes, próximo das avenidas ricas - Quinta, Park, Lexington. O vendedor paquistanês julgara que eu o estava a censurar quando comecei a falar-lhe no preço. Depois, passada a desconfiança inicial, lá lhe consegui arrancar um sorriso tímido de satisfação. Em Nova Iorque as pessoas partem sempre do princípio que as vamos agredir verbal ou fisicamente, antes de darem o benefício da dúvida. Para entender os nova-iorquinos é preciso começar por perceber essa primeira regra de ouro e abordá-los cautelosamente, fazendo os possíveis por evitar quaisquer mal entendidos.
Eu tinha-me sentado finalmente, depois de ter andado a deambular pelo parque de lista na mão, à procura de todas as estátuas para fotografar. Os deuses nesse dia não estavam comigo - tinha os pés cheios de bolhas, o tempo estava nublado e por isso péssimo para fotografar e, para cúmulo dos cúmulos, ao fim de 5 anos a portar-se maravilhosamente, a minha Canon tinha dado o berro no que concernia ao AutoFocus. De cada vez que fazia zoom, deixava de focar. Desesperada, comprei o hot dog e sentei-me naquele que me pareceu um local idílico e reservado, para amarfanhar o meu hot dog e descansar.
Tratava-se de um delgado corredor ladeado por alguns bancos de jardim de um lado, e do outro por uma lagoa enorme bordejada por gigantes e magníficos salgueiros chorando ramos para dentro das águas cálidas. O céu nublado reflectia-se no lençol esverdeado, havia uma ponte de pedra do lado direito e de vez em quando passavam barcos a remos com turistas embevecidos. Era um recanto verdadeiramente zen e penso que foi também por esse motivo que Zheng o escolhera.
Já lá estava sentado quando cheguei, a tocar o seu longo instrumento, que não consegui identificar. Era uma espécie de viola comprida de cordas e que emitia um som entre a harpa e a tuba, que me transportava para terras do sol nascente. Observei-o - era pequeno, franzino, amarelado e tinha o cabelo muito preto e curto. Inclinava-se sobre o seu instrumento com devoção e agradecia com um acento da cabeça as moedas que as pessoas lhe iam atirando. Andaria pela meia-idade e parecia um pouco cansado, mas não abatido ou derrotado. Talvez tivesse chegado há pouco tempo ainda fresco e estivesse a juntar dinheiro para cumprir o sonho de uma vida - ingressar na prestigiada Julliard School, responsável pela formação dos melhores músicos do mundo.
Ao fim de um tempo, o seu reportório mudou e Zheng passou das músicas da sua terra natal para melodias ocidentais mais reconhecíveis pelo seu pequeno e passageiro auditório, e que no seu instrumento se transformavam como por magia numa banda sonora de um relato das aventuras de Marco Polo por terras da seda.
Fiquei ali um bom bocado, muito depois de já ter engolido o hot dog, deixando-me mergulhar naquele sonho oriental, que me transportava para um qualquer jardim zen a milhares de quilómetros de distância, no meio da capital mais ebuliente e efervescente do mundo.
Por fim, levantei-me e ao abandonar o recanto deixei cair uma nota de 5 dólares no chapéu que Zheng colocara no chão. Ele sorriu o seu sorriso oriental discreto e, numa voz rouca agradeceu-me num tom de voz efusivo, admirado com o valor elevado da gorjeta. Era pouco para aquilo que ele me tinha oferecido.

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