segunda-feira, 14 de outubro de 2013

MÃE

"Vou ter tantas saudades tuas."
"Eu sei, eu sei. Mas tens que continuar com a tua vida. Têm que continuar."
Deitei a cabeça no colo dela e aí fiquei a chorar durante um bom bocado, sem me conseguir conter. Eu é que lhe devia estar a dar forças a ela e era ela quem punha os seus braços à minha volta e me afagava o cabelo, numa imagem que ficou para sempre gravada na minha memória, como se estivesse a observar de fora uma pintura - sentada na cama a consolar-me, a minha mãe era a imagem viva de uma Madonna bondosa, plena de amor e sacrifício.
"Tens medo?", perguntei-lhe.
E ela respondeu-me, com o seu humor britânico seco e muito característico:
"Não sei. Nunca morri."
Essa foi a última conversa totalmente racional que tivemos, 4 meses antes de ela morrer com um cancro do pâncreas. A partir desse dia, o dia seguinte ao meu aniversário, porque ela não me quis estragar o dia de anos, assisti à sua lenta degradação física e mental. Era quase imperceptível, e quando dava por mim, percebia que já há uns dias que não conseguia falar com ela como na semana anterior. E depois ficava a pensar, mas quando é que isto aconteceu? quando é que eu tive uma conversa normal com ela? e não conseguia precisar o dia em que ela mudara. A morfina, mais do que o cancro, dá cabo de uma pessoa. É, em última instância, o que acaba por matar o doente. As dores que o cancro dá são tantas que as doses de morfina são administradas com intervalos de 4 horas. Mas depois ela pedia mais, nos entretantos, e fazia chantagem connosco. Meia zonza, afirmava peremptoriamente - "Se o teu irmão estivesse aqui, ele dava-me mais."
E percebi que essa lenta degradação conferida por uma doença mortal como o cancro transforma as pessoas em animais. Animais que agem por puro instinto de sobrevivência e protecção, capazes de tudo para terem a dose que lhes tire a dor excruciante que estão a sentir. A minha mãe já não era a minha mãe. Era outra coisa qualquer, que gemia, e gritava, e implorava, e nos insultava.
Quando se foi de vez, eu estava zangada com ela. E nunca mais me perdoarei por essa fraqueza estúpida. Por ter sido muitas vezes impaciente com ela quando, por exemplo, recusava a comida que lhe íamos dando, sem percebermos que o organismo se estava a fechar e que já não precisava de alimento. A enfermeira explicou-nos, pacientemente, "Os familiares têm tendência a ficar com receio quando o doente não come, porque não percebem que o corpo já não precisa de alimento, está a deteriorar-se." Fui eu quem lhe deu a última refeição - leite quente por uma palhinha, que ela recusava gemendo "Insensível. És insensível." E foram estas as últimas palavras que eu ouvi dela. Fiquei durante largos meses a repetir para mim mesma esta mantra - não lhe devia ter dado aquele leite, eu não lhe devia ter dado aquele leite, eu não lhe devia ter dado aquele maldito leite. Ainda hoje, passado mais de um ano, continuo a recriminar-me por me ter zangado com ela quando sujava os lençóis da cama porque já não tinha forças para esperar pelo penico. Chegámos a mudar os lençóis da cama 3 e 4 vezes no mesmo dia. E eu estava farta ... e já não desejava que ela chegasse ao Natal, como nos primeiros dias em que ela foi lá para casa. Não assim, não naquele estado. Antes que se fosse, rapidamente.
"Quando é que isto acaba?", perguntava-me ela, quase inconsciente, contorcendo-se de dores no remoinho de lençóis. E eu, sem saber já o que lhe responder, dizia: "Acaba quando tiver que acabar ..." Acabou, finalmente, num Sábado à tarde. Escolheu um dia como ela para se ir - um dia calmo e doce e sossegado, um dia em que estávamos os dois por perto. Morreu com o meu irmão ao pé dela, eu estava na sala. E eu pensei que ela também se tivesse ido zangada comigo.
Algum tempo depois vi o filme "Amour" de Michael Haneke. Há uma cena nesse filme, uma cena pungente, em que a personagem principal que está a morrer recusa por todos os meios o líquido que o marido lhe quer dar, chega mesmo a cuspi-lo. O marido, desesperado, dá-lhe um estalo. Talvez haja muitos que não entendam essa cena, porventura, e que a achem demasiado violenta. Eu percebi-o perfeitamente. E fiquei mais tranquila com a minha consciência. Eu nunca chegara a esse ponto. Teria sido impensável chegar a esse ponto. Zanguei-me, impacientei-me, fartei-me, sim, concluí que não tenho queda para enfermeira, nem sequer da minha mãe. Mas sei que fiz o que pude, fiz o que a minha personalidade me permitiu, fiz tudo para que ela se sentisse bem em minha casa, na minha cama, até morrer. Apesar de ter sido das experiências mais difíceis da minha vida, mais difícil ainda do que o meu próprio cancro.
Apesar de tudo, não me consigo ainda perdoar pelos momentos de impaciência que tive. Já passou mais de um ano e ainda não consigo.
Perdoa-me, mãe. Perdoa-me. Porque eu não sou capaz. E, por favor, não fiques zangada comigo.

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