terça-feira, 15 de outubro de 2013

Pai

O meu pai morreu 7 meses depois da minha mãe. Sempre que ouvia aquelas histórias sobre velhos casais cujo par não resiste à morte do outro e o segue, por desgosto, ficava sempre na dúvida. Acreditava mas não percebia o como. Como é que isso acontece?
Agora fiquei a perceber. Quando o outro é o centro do nosso mundo, quando o outro é a única coisa que nos mantém vivos, mesmo que seja apenas como uma espécie de bengala em quem nos apoiamos, sem pensar nas consequências, então é fácil morrer por amor.
O meu pai não morreu por amor. Morreu porque ficou sozinho, desamparado na sua fúria, subitamente sem o saco de pancada que toda a vida ali esteve para aparar os seus golpes violentos, insensíveis, egoístas, psicóticos, vazios. O meu pai morreu porque desistiu de viver.
A sua morte fez-me muito mais confusão do que a da minha mãe. A minha mãe não teve escolha. Talvez tivesse se tivesse deixado de fumar mais cedo, mas isso é daqueles “ses” sobre os quais nem vale a pena cismar. O Steve Jobs nunca fumou na vida, era frutariano, ou lá como se diz, e foi da mesma maneira que ela, de forma ainda mais estúpida porque recusou ser operado durante meses que lhe podiam ter prolongado a vida brilhante que teve.
A morte do meu pai foi o suicídio dos cobardes, como Truman Capote disse sobre a morte da sua própria mãe – o alcoól é o suicídio dos cobardes. Vão-se matando lentamente, durante uma vida inteira, sem coragem para darem um tiro nos cornos. Com uma cirrose que recusava tratar, problemas circulatórios que recusava corrigir, dois filhos que recusaram perdoar-lhe uma vida inteira de suplícios indescritíveis e muitas vezes difíceis de acreditar para quem não estava lá dentro de casa para ver, e uma mulher que finalmente deixou de poder aparar qualquer dos seus golpes, o meu pai decidiu morrer.
Podia ter tido uma vida extraordinariamente feliz. Não quis. Se não tivesse querido apenas por ele, eu até compreendia. Mas na sua psicose auto-comiserativa arrastou consigo três pessoas que não tinham culpa de nada. A única culpa que tiveram foi a de terem por todos os meios, durante uma quantidade absurda de tempo, tentado dar-lhe vãs e infrutíferas e ingénuas segundas e terceiras e quartas e quintas e infindáveis oportunidades para se redimir.
Aos olhos do mundo, que não podia ou não queria adivinhar, o meu pai foi um médico que deixou saudades. Tem no seu currículum mais de 3.000 operações. Salvou centenas de vidas, os doentes tinham-lhe uma adoração imensa, os colegas um respeito enorme. Jamais se enganava num diagnóstico que fazia. Talvez ninguém se importasse se soubesse que no meio dessas centenas de vidas, 3 foram por si destruídas lenta e lamentavelmente. Dostoievski perguntou: “Imagina que terias a capacidade de construir um admirável mundo novo, pleno de paz, alegria e felicidade para todos. Mas que para construíres esse mundo, terias de torturar lentamente e até à morte um minúsculo ser. Fá-lo-ias? Diz-me e diz-me a verdade.”
Não sei qual teria sido a resposta do meu pai. Mas sei que foi exactamente isso que ele fez.
Ainda assim, ainda assim, e porque ninguém é totalmente mau ou totalmente bom, o meu pai ensinou-me algumas coisas. Poucas, mas se calhar por serem poucas, ficaram bem gravadas na minha memória.
O meu pai ensinou-me a apanhar conquilhas na praia.
Ensinou-me a gostar de atletismo, ténis, Fórmula 1.
Ensinou-me que aquilo que me separa de um escroque pode ser apenas uma coisa chamada dor. Porque não existem pessoas más, como também alguém disse, existem é coisas más que acontecem às pessoas e que, acrescento eu, as transformam em anjos vingadores e cegos, atentando contra os que lhes estão mais próximos, sem perceberem que é precisamente neles que poderia estar escondida a sua redenção.
Ensinou-me uma das coisas mais importantes que alguém me podia ter ensinado, quando tive o cancro e perdi todo o meu cabelo e estava aterrorizada por ter de sair para a rua com uma cabeleira postiça. Ele disse-me: “Tu não tens que ter medo de ninguém! Tu nem de mim tens medo, quanto mais dos outros.” E essa frase deu-me a coragem que me faltava para enfrentar o mundo na altura mais difícil da minha vida. Precisamente porque foi dita por um sacana, filho da mãe, que me aterrorizou durante mais de metade da minha existência, sem imaginar os danos irreparáveis que me causou.
A última coisa que me disse foi um “Até logo” ao telefone, cheio daquele orgulho que nunca o abandonava. Vivia num mundo imaginário que só ele entendia e esperava ainda que nós regressássemos a casa para lhe fazer companhia, depois da merda toda que tinha feito.
Pai, a ti peço-te uma coisa, se puderes, e porque foi isso que fizeste toda a vida em prol dos outros – dá-me saúde para poder viver e aproveitar a vida como tu não soubeste nem quiseste. Dá-me saúde, por favor. É o mínimo que podes fazer por mim. Eu sei que se me estiveres a ver e a ler, estarás a sorrir e a dizer o que de vez em quando dizias: “Ela é lixada ..."
Tenho a quem sair ... pai.

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