segunda-feira, 7 de outubro de 2013

MURMÚRIOS DE LISBOA CXVII

A Deusa da Beleza e o Deus da Saúde

Em tempos idos, a Deusa da Beleza encontrou o Deus da Saúde e os dois apaixonaram-se. Eram ambos muito belos, exemplares magníficos da sua espécie e a sua paixão foi marcada por uma terrível separação. A mãe da Deusa da Beleza levou-a numa viagem marítima para uma ilha no meio do Mar Mediterrâneo, para longe do desesperado Deus da Saúde. Escreveram-se longas cartas amorosas durante alguns meses e encontraram-se algumas vezes, pois não podiam ficar separados durante muito tempo. Até que, finalmente, conseguiram o que pretendiam - desposaram-se numa cerimónia magnifica, com toda a pompa e circunstância, para a qual foram convidadas todas as famílias do reino do Deus da Saúde.
Mas as coisas cedo começaram a correr mal. O Deus da Saúde era orgulhoso, altivo e psicótico, enquanto a Deusa da Beleza não possuía a personalidade para lhe fazer frente. Era doce e bondosa, mas também um pouco fútil e muito inexperiente. Estava também desesperada, pois corria o risco de ficar sozinha e ter de se desenvencilhar no mundo sem auxílio. A mãe estava prestes a casar pela segunda vez, após a morte do primeiro marido e não desejava levá-la a reboque para o outro lado do Atlântico, onde pretendia celebrar as suas segundas núpcias em voluptuosa paz. A mais nova de quatro irmãos, a Deusa da Beleza era a mais frágil e submissa e viu no Deus da Saúde o seu barco de salvação. Aceitou o seu pedido de casamento, sem imaginar que ele lhe mentira ao afirmar que viveriam os dois sozinhos num lindo palácio que ela poderia escolher. Em vez disso, permaneceram toda a vida com a mãe do Deus da Saúde que, para além de ser mentirosa, velhaca e invejosa, odiava a sua nora.
Os anos foram passando. O Deus da Saúde era mimado e prepotente e habituou-se a tratar a sua bela esposa da mesma forma que tratava a mãe. Tiveram duas crianças, uma rapariga e um rapaz, que sofriam também a despotice do pai. Era irónico, mas enquanto a Deusa da Beleza tinha o dom do amor e da vida, o Deus da Saúde espalhava o deserto inóspito da morte mental na sua própria casa, enquanto por todo o reino as suas mãos de ouro conseguiam soprar vida nos corações e nos corpos dos seus súbditos. E toda a gente o amava e respeitava, sem imaginar o engodo que acontecia debaixo dos seus narizes. E todos desconheciam os milagres de vida que a discreta Deusa da Beleza ia espalhando no seu pequeno, negro ninho destinado aos seus dois filhos.
Apesar de todo o sofrimento, o espírito da Deusa da Beleza conseguiu durante longos anos ser mais forte do que tudo e continuar a espalhar a beleza e a vida pela vida dos seus dois tristes filhos, salvando-os da loucura e da destruição totais. Enquanto isso, à medida que o tempo passava e a esperança de que o pai se modificasse se desvanecia dos seus corações, e apesar de todo o amor que recebiam da mãe, os filhos do Deus da Saúde aprenderam o que era o ódio e odiaram e desprezaram o seu carrasco.
De fora, parecia a todos que eram uma família feliz. A alegria eterna da Deusa da Beleza, a dissimulação do Deus da Saúde e o terror silencioso dos seus filhos disfarçavam o sofrimento que se vivia nos seus domínios.
Até que a velhice, o cansaço e a doença venceram a Deusa da Beleza. E nem mesmo o amor imenso que sentia pelos seus filhos ou as mãos de ouro do seu esposo conseguiram salvá-la. A Deusa da Beleza pereceu e deixou atrás de si uma tristeza, uma saudade e uma solidão imensa nos corações e nas almas dos seus filhos e do seu esposo. Alguns meses mais tarde, apesar de tudo o que se passara nas suas vidas, o Deus da Saúde seguiu a sua esposa e definhou também até à morte.
Ainda em vida, o Deus da Saúde preparara um mausuléu resplandecente para repousar junto dos seus. Mas os filhos não respeitaram as suas indicações e colocaram a Deusa da Beleza lá dentro, sozinha. Irão fazer-lhe companhia, um dia.
Hoje a Deusa da Beleza repousa numa rua ensolarada, com vista para o rio. O Deus da Saúde está a algumas ruas de distância, num muro ensombrado. Foi assim que o filho quis. A filha acatou, mas pensa que talvez isso seja redundante, que talvez os dois estejam finalmente, verdadeiramente, profundamente juntos, algures num qualquer Olimpo. E que tenham deixado as coisas terrenas e vis para trás. É o que ela mais deseja, porque detesta finais infelizes.

Dedicado aos meus pais.

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