sexta-feira, 3 de outubro de 2014

Paradise - Day 5

O Amigo Alemão
O alemão é meu amigo há uns três ou quatro anos, sem o saber. Neste caso poderia aproveitar o ditado irlandês e alterá-lo para “Um desconhecido pode ser um amigo sem o suspeitar.”
O amigo alemão é relativamente alto e gordo, com aquela gordura do tipo pedófila, branca e banhosa, que parece arrastar-se em seu redor como a gosma das lesmas quando se deslocam. É ruivo, tem o cabelo pelos ombros e barba rala, nem carne nem peixe.
Aparece sozinho, sem sombrinha, acompanhado de cigarros e livros. Gosta de jovens adónis e não liga pevas a mulheres. É por essa razão que me sinto seguríssima ao seu lado e a praia ganha sempre contornos de campo de concentração policiado por tropas nazis quando ele aparece. O amigo alemão não levantaria as banhas para me proteger de nenhum pederasta, e provavelmente até aplaudiria no seu íntimo se algum pederasta me apoquentasse o espírito, mas nenhum pederasta se aproxima enquanto ele estiver pelas redondezas.
No primeiro ano que o conhecemos o amigo alemão foi protagonista de um episódio trágico-cómico que deveria tê-lo afastado definitivamente do Paraíso, mas não afastou. O que só prova que o alemão é inteligente. Havia um velho pescador. No Paraíso há sempre um velho pescador em qualquer história digna de nota. Havia um velho pescador que decidiu postar-se no meio da praia, quando a maré estava vaza, e deixar uma engenhoca caseira enterrada na areia para apanhar peixe. Compreendam. O velho pescador já não vai para a faina no alto mar porque as suas pernas já não o aguentam, mas ainda tem a nostalgia da pesca e por isso congeminou um absurdo rotundo que poderia ter sido responsável pela morte de um turista incauto. A maré foi subindo e tapando a engenhoca presa por um fio à mão do velho pescador. Ele postou-se no meio do areal a servir de polícia sinaleiro, mas como não tinha a imponência de SS do amigo alemão, ninguém lhe ligava muito e só por pura sorte é que não houve nenhum pé enfiado no anzol escondido no fundo do mar.
Foi então que o amigo alemão decidiu ir tomar banho e como estivera a tarde toda deitado de barriga para baixo a ler o seu livro e a fumar cigarros, não suspeitava sequer o que o esperava debaixo das ondas. O amigo alemão entrou lampeiro no mar e foi nadar precisamente para o sítio onde o velho pescador tinha colocado a sua mina pesqueira. Saltou a tampa ao velho pescador. Começou a gesticular e a berrar para o amigo alemão, que saísse dali imediatamente. Não ocorreu ao velho pescador (nunca ocorre e nem poderia, lembro que eles são os reis do areal e por isso não podem perder tempo com essas mesquinhices) que a culpa não era do amigo alemão, mas sua. O velho pescador parecia um nazi a enchotar judeus para dentro dum forno. O amigo alemão lá percebeu finalmente, sobre o ruído das ondas, que aquela gritaria toda era para ele e saiu do mar. O velho pescador estava ensandecido, mas a sua ensandecice era lusa, o que significava que o amigo alemão não percebeu patavina do que o outro lhe berrava. Não sei se até hoje o amigo alemão percebeu realmente o que se passara. Deve ter chegado à Alemanha e contado o episódio desta maneira – tenham cuidado em Portugal, às vezes há velhos doidos que nos querem arrancar do mar por razão nenhuma. Ou talvez tenha pensado que o velho pescador julgasse que ele não sabia nadar ou que corria perigo de vida. Não sabemos, nunca saberemos.
A verdade é que pelos vistos este episódio não o demoveu de regressar ao Paraíso. E cá está ele de novo, vestido com as cores da sua bandeira. T-shirt preta, calções encarnados e toalha às riscas amarelas e brancas.

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