O Amigo Alemão
O alemão é meu amigo há uns três ou quatro anos, sem o
saber. Neste caso poderia aproveitar o ditado irlandês e alterá-lo para “Um
desconhecido pode ser um amigo sem o suspeitar.”
O amigo alemão é relativamente alto e gordo, com aquela
gordura do tipo pedófila, branca e banhosa, que parece arrastar-se em seu redor
como a gosma das lesmas quando se deslocam. É ruivo, tem o cabelo pelos ombros
e barba rala, nem carne nem peixe.
Aparece sozinho, sem sombrinha, acompanhado de cigarros e
livros. Gosta de jovens adónis e não liga pevas a mulheres. É por essa razão
que me sinto seguríssima ao seu lado e a praia ganha sempre contornos de campo
de concentração policiado por tropas nazis quando ele aparece. O amigo alemão
não levantaria as banhas para me proteger de nenhum pederasta, e provavelmente
até aplaudiria no seu íntimo se algum pederasta me apoquentasse o espírito, mas
nenhum pederasta se aproxima enquanto ele estiver pelas redondezas.
No primeiro ano que o conhecemos o amigo alemão foi
protagonista de um episódio trágico-cómico que deveria tê-lo afastado
definitivamente do Paraíso, mas não afastou. O que só prova que o alemão é
inteligente. Havia um velho pescador. No Paraíso há sempre um velho pescador em
qualquer história digna de nota. Havia um velho pescador que decidiu postar-se
no meio da praia, quando a maré estava vaza, e deixar uma engenhoca caseira
enterrada na areia para apanhar peixe. Compreendam. O velho pescador já não vai
para a faina no alto mar porque as suas pernas já não o aguentam, mas ainda tem
a nostalgia da pesca e por isso congeminou um absurdo rotundo que poderia ter
sido responsável pela morte de um turista incauto. A maré foi subindo e tapando
a engenhoca presa por um fio à mão do velho pescador. Ele postou-se no meio do
areal a servir de polícia sinaleiro, mas como não tinha a imponência de SS do
amigo alemão, ninguém lhe ligava muito e só por pura sorte é que não houve
nenhum pé enfiado no anzol escondido no fundo do mar.
Foi então que o amigo alemão decidiu ir tomar banho e como
estivera a tarde toda deitado de barriga para baixo a ler o seu livro e a fumar
cigarros, não suspeitava sequer o que o esperava debaixo das ondas. O amigo
alemão entrou lampeiro no mar e foi nadar precisamente para o sítio onde o
velho pescador tinha colocado a sua mina pesqueira. Saltou a tampa ao velho
pescador. Começou a gesticular e a berrar para o amigo alemão, que saísse dali
imediatamente. Não ocorreu ao velho pescador (nunca ocorre e nem poderia,
lembro que eles são os reis do areal e por isso não podem perder tempo com
essas mesquinhices) que a culpa não era do amigo alemão, mas sua. O velho
pescador parecia um nazi a enchotar judeus para dentro dum forno. O amigo
alemão lá percebeu finalmente, sobre o ruído das ondas, que aquela gritaria
toda era para ele e saiu do mar. O velho pescador estava ensandecido, mas a sua
ensandecice era lusa, o que significava que o amigo alemão não percebeu
patavina do que o outro lhe berrava. Não sei se até hoje o amigo alemão
percebeu realmente o que se passara. Deve ter chegado à Alemanha e contado o
episódio desta maneira – tenham cuidado em Portugal, às vezes há velhos doidos
que nos querem arrancar do mar por razão nenhuma. Ou talvez tenha pensado que o
velho pescador julgasse que ele não sabia nadar ou que corria perigo de vida.
Não sabemos, nunca saberemos.
A verdade é que pelos vistos este episódio não o demoveu de
regressar ao Paraíso. E cá está ele de novo, vestido com as cores da sua
bandeira. T-shirt preta, calções encarnados e toalha às riscas amarelas e
brancas.
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