sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Paradise - Day 13

A Gaivota e o Homem
 
Há uma gaivota sem uma pata. É um macho branco e cinzento. À primeira vista parece uma gaivota igual às outras, salvo quando um olhar mais atento percebe uma leve periclitância que conduz o olhar para as patas e logo se percebe que afinal é apenas uma pata, que o seu par não está afinal escondido entre as penas, pois que as gaivotas não partilham esse hábito com os flamingos, por exemplo.
 
Há um homem, deitado lá para trás no areal, jovem e atraente, mas que permanece escondido do mundo, metido no seu próprio mundo, sem olhar as vistas, sem galar as mulheres. Quando se levanta, o homem fá-lo com a ajuda de um par de canadianas e revela a ausência de uma perna.
 
A gaivota sem pata é uma das mais antigas e afoitas. Levanta vôo tal e qual as suas companheiras inteiras, pousa quase tão equilibradamente como elas e é a primeira e das poucas a aventurar-se mar fora para pousar no colo das ondas grandes. Adivinha-se que se sente talvez melhor no caldo lânguido, embalada suavemente, poupando à única pata que lhe resta todo o peso do seu corpo leve feito de penas.
 
O homem atravessa o areal saltitando com a ajuda das suas muletas e senta-se com poucos percalços à beira do mar. Adivinha-se que já fez aquilo muitas vezes, que já é um hábito. Senta-se e olha o mar e pressente-se, mesmo ao longe, a vontade nostálgica de correr para as ondas e mergulhar nelas como em tempos já fez. Essa nostalgia é palpável.
 
A gaivota sem uma pata continua a poder voar. A pata é um mero acessório na sua anatomia primordialmente alar, concebida para o ar. A gaivota voa e não precisa de imaginação para o fazer.
 
O homem sem uma perna continua a poder andar, mal. A sua mente continua a poder voar sobre as ondas e a sua imaginação carrega o seu corpo na direcção dos sonhos que já não pode realizar.
 
A gaivota não sabe que existe o homem sem uma perna.
 
O homem não reparou na gaivota sem uma pata.
 
Os dois estão unidos, sem o saberem, sem nunca o saberem.
 
Ficarão unidos aqui, nestas palavras entrelaçadas por mim, sem nunca o imaginarem.

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