quinta-feira, 16 de julho de 2009

MURMÚRIOS DE AVALON XXI

O Psiquiatra Deprimido
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O psiquiatra estava sentado numa cadeira, a olhar o infinito ou um vazio qualquer dentro dele e nem sequer parecia respirar. Passou diante dele. Os olhos tinham uma estranha e incómoda propriedade vítrea, como se pertencessem aos de um cego, sem película opaca, mas muito mais assustadores por causa da ausência daquela. Porque, se nos debruçássemos atentamente sobre eles, veríamos todos ows pormenores do globo ocular, a íris verde, as pestanas, a córnea, as nervuras vermelhas que sarapintavam o berlinde branco e opaco. Só que os olhos do Psiquiatra estavam parecidíssimos com os de um pássaro, uma pomba. Sem emoção, sem qualquer espécie de sentimento ou atestado de que por detrás deles repousava um cérebro consciente e racional. Eram apenas dois berlindes brancos e verdes, parados no meio do rosto do homem sentado naquela cadeira, a observar fantasmas interiores.
O Escritor ponderou sobre se devia tocar-lhe no ombro, mas depois imaginou que acordar alguém de um torpor semelhante, seria talvez como acordar alguém de um episódio de sonambulismo - perigoso e inútil.
Resolveu pigarrear, mas nada. O outro nem sequer fizera menção de ter notado a sua presença naquele quarto. Cantou um pouco, uma rima que se lembrava dos tempos de escola e que lhe apeteceu subitamente cantarolar. Talvez tivessem partilhado a mesma geração e o Psiquiatra desatasse num pranto incontrolável pelas memórias que aquela musiquinha certamente lhe evocaria.
A saia da Joana a voar ao vento e a mostrar a pernoca rechonchuda.
A roupa da mãe a cheirar a amaciador (nessa altura já haviam amaciadores para roupa de máquina? rever este ponto - anotou o Escritor - não se lembrava de nada parecido, apenas daquele sabão azul e branco horrível com que a mãe às vezes lavava cuecas mais encardidas).
Adiante. Estou a divagar.
A chucha no dedo e na boca.
A ida ao cinema com o Pedrito, para depois vê-lo ficar agarrado às mamas da Teresa o tempo todo que o filme decorreu, desconcentrando-o irremediavelmente - era a estreia da Guerra das Estrelas, porra! Por causa do Pedrito e das mamas da Teresa, não tomara atenção a todos os pormenores soberbos das naves, rais parta as hormonas da adolescência!
Subir as escadas a correr para ir buscar mais uma fatia de pão com marmelada e voltar a descê-las em modo ultra-sónico, escorregando pelo corrimão abaixo que se fosse agora, hoje, lhe teria dado uma apoplexia só de olhar para aquelas alturas.
O Escritor resolveu assobiar. Talvez fosse do tom da canção e não propriamente a canção.
O apito aterrorizador do amolador de tesouras que andava pelo bairro, nunca se sabia muito bem por onde, já que ninguém nunca o via, apenas ouvia.
Depois lembrou-se que o Psiquiatra não estava cego, apenas depressivo. O que fazem ou vêem as pessoas que estão depressivas? Vazios ou buracos negros a olharem para elas, eternamente.
Claro que o Psiquiatra nunca o poderia ver, mesmo que não estivesse cego.
Regressaria mais tarde, deciciu. Talvez este Psiquiatra em particular sofresse de maníaco-depressão. Nesse caso, seria apenas uma questão de timing até o apanhar na fase eufórica da mania, bem mais interessante do que este marasmo aturdido.
Já venho.

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