segunda-feira, 14 de setembro de 2009

MURMÚRIOS DE AVALON XXVII

O Escritor e o Escritor
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O Escritor escreve. O Escritor lembra-se de ter ouvido um grande Escritor dizer que não vale a pena escrever, se não for para se tentar escrever melhor do que os escritores que admiramos. O Escritor precisou de uma vida inteira para entender isto.
E recorda aquele final de manhã em que remexia livros na livraria perto da faculdade e calhou pegar num daquele mesmo Escritor. Leu apenas um parágrafo exposto na contra-capa do livro, cujo título já nem recorda. É possível que entretanto já o tenha lido. Esse parágrafo reduziu-o a pó, a uma insignificância lamentável, surpreendente. Não recorda o que leu, especificamente, mas recorda o que sentiu - uma impotência atroz, uma incompreensão humilhante (ele, que nessa altura se achava uma inteligência do catano!), uma frustração inenarrável. O mundo reduziu-se àquele parágrafo magnífico, ali, diante dos seus olhos, solitário e digno, valendo por si próprio, sem arrogância, sem qualquer espécie de superioridade, apenas um conjunto de frases magistralmente urdidas, cujo significado ele não era capaz sequer de deslindar na totalidade. Leu-o e releu-o até se cansar, até não suportar mais o seu peso e, ao mesmo tempo, a sua leveza absurdamente perfeita. E na sua mente, o Escritor repetia a mesma frase vezes e vezes sem conta, como uma ladainha insuportável, "Como serei alguma vez capaz de escrever algo semelhante?".
Largou o livro, por fim, devolveu-o à prateleira e nem sequer o comprou. Não foi capaz. Não era inveja, o que sentia, era pior. E diante do Escritor ergueu-se uma escada interminável, em cujo topo estava o parágrafo. E nesse momento da sua vida, o Escritor soube que teria de subir essa escada e que cada degrau lhe custaria um incontável número de palavras, de cãibras, de dores, de desespero. Havia uma escada para subir. Não sabia se algum dia conseguiria chegar ao topo, mas tentaria, morreria a tentar, não porque quisesse, não porque se sentisse confiante, não porque acreditasse em si, mas porque não havia alternativa. Escrever é como respirar.
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Agora, anos mais tarde, décadas após aquele fim de manhã na livraria, milhares de quilómetros de escrita passados e alguns livros publicados, havia quem julgasse, o Escritor sabia, que ele subira todos os degraus da escada e alcançara o topo. Depois de ter lido o famigerado parágrafo, o Escritor não escrevera uma única palavra durante quatro anos. Não fora capaz. Assustou-se mesmo, ao fim de algum tempo, imaginando que não seria capaz de escrever nunca mais uma única palavra que fosse.
Quem julgava que ele tinha atingido o topo, não conhecia esta história. E, se a conhecesse, não poderia nunca compreendê-la. Voltara a escrever, não sabia se feliz ou infelizmente. Regressara às palavras porque estas estavam entrelaçadas nos seus dedos como mel e acabaram, eventualmente, por pingar lentamente no papel de novo.
Nunca mais relera aquele parágrafo ou, se o relera, não se recordava. Mas sabia que não tinha alcançado sequer metade da escada. Ele sabia, e isso era o pior.

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