quarta-feira, 24 de outubro de 2012

MURMÚRIOS DO PARAÍSO XXIII

O Delfim com Pêlo na Venta

O Delfim tinha pêlo na venta. Mas ela só descobriu isso alguns dias mais tarde. Esquecera-se que todos os locais, especialmente os conquilheiros, tinham pêlo na venta. Chegavam a ser agressivos, mesmo.
Ele apanhou-a completamente desprevenida, claro. Não lhe acontecia uma assim há anos, literalmente. O Delfim apareceu do nada, depois do velho, do porco e do tarado dos cães. 

Eu explico.
Primeiro foi o gordo porco e nojento que andava a passear à beira-mar para disfarçar e depois se sentou perto dela e, sem vergonha na cara, se pôs a tomar-lhe as medidas. Quando ela se levantou para se ir embora da praia, o porco chegou mesmo a afunilar os lábios em sinal de aprovação, algo que lhe fez revirar o estômago em convulsões de vómito metafórico e literal.
A seguir foi o velho, doido, que ela só descobriu que era doido quando percebeu que ele andava pela praia toda não à procura dela mas de algo indecifrável. Ao fim de dois dias disto, conseguiu arrumar o velho maluco nas rotinas do Paraíso e seguir com a sua vida.
O gordo porco faria a sua aparição mais duas vezes, ambas dignas de filmes policiais de alto calibre hollywoodiano – nesse mesmo dia, quando regressou à praia a medo para passear, depois de ter estado uma boa hora a escrutinar o areal da varanda do seu sétimo andar privilegiado, à espera que a sua figurinha desapareces, descansou quando não viu as suas banhas refasteladas em lado nenhum, para logo a seguir quase ter tido um ataque de coração quando, olhando lá para o fundo para o varandim de madeira, deu de caras com o dito cujo sentado, a escrutinar o areal. Só faltou aquele bang de música de terror de filme de perseguição assassina. Foi passear, mas só olhou para trás uma hora mais tarde. Ele não a tinha seguido. Da segunda aparição se fará aqui próximo post. Por agora se dirá apenas que Hannibal Lecter ao pé deste gordo é como um príncipe ao pé de um porco.
Finalmente, o tarado dos cães, que ela já conhece de outros anos, sentou-se a uns metros de distância nessa mesma tarde, e por artes ela não sabe de que magia, fez o raio dos cães passarem pela sua sombrinha e um deles chegou mesmo a sentar-se descaradamente durante uns segundos. O tarado dos cães também foi arrumado rapidamente na rotina – aparece sempre à tarde, passeia os cães durante uns minutos, fica um bocado sentado na areia a observar alguma turista como ela e vai-se embora. É inofensivo, apesar de incomodativo.
O Delfim surpreendeu-a no dia seguinte, quando se virou na toalha e lá estava ele sentado. Suspirou e praguejou entredentes – “outra vez?!! não me deixam em paz!” Mas, este era diferente. Era novo, magro, usava um boné branco na cabeça e uns óculos espelhados que lhe tapavam a cara. Sobretudo, não olhava descaradamente. Fingia que não olhava. Olhava para todos os lados e depois, sorrateiramente, olhava para ela. Achou-lhe uma certa piada. Achou piada ao facto de ele não saber o que fazer aos braços e às pernas, que coçava para disfarçar. Achou piada ao facto de quando ele não estava a olhar ela ter a certeza de que lhe apetecia tudo menos não olhar. E, sobretudo, não era nem velho nem gordo, nem parecia um serial killer. Era um delfim. Conjecturou sobre a sua ocupação – desejou que fosse conquilheiro.
Ela tem um fétiche por conquilheiros, estão a ver.

Explico.
Os conquilheiros são jovens, esguios, fortes, elegantes e danados para a brincadeira. Atiram-se descaradamente. Agressivamente. Parece que querem matar em vez de galar. Ela acha-lhes piada, desde que eles não abusem muito. O problema é que quando um conquilheiro fisga uma donzela, ela está literalmente feita. Primeiro leva com um galanteio assim um bocado demasiado exagerado mas que ela, vá, até acha piada porque não está ainda bem a ver onde é que a coisa tem potencial para chegar. Logo a seguir, sobretudo se se fizer de parva e ignorar, leva com outro galanteio que não é galanteio propriamente dito, é mesmo tipo assim uma espécie de assassino de todos os galanteios. Os conquilheiros não gostam de ser ignorados e, ela suspeita, sofrem de um qualquer complexo de inferioridade relativamente a todas as turistas armadas em boas que lhes invadem o Paraíso nos meses de Verão. Na cabeça deles, ela imagina, eles pensam: estas p.....s andam aqui a passear o cu e a usufruir do que é nosso e ainda têm o descaramento de se fazer de difíceis.
Os conquilheiros têm um dom especial – fazer uma mulher sentir-se uma princesa e, logo a seguir, sem sequer dar tempo para respirar, fazê-la sentir-se uma pega autêntica. Todos os homens deviam ter lições com conquilheiros do Paraíso, para perceberem como uma mulher se sente quando o galanteio não é galante.

Mas voltando, portanto, ao Delfim. Ela achou-lhe piada. Foi tomar banho, voltou, fez um esforço tremendo para não olhar para ele e depois ele basou. Ela ficou com pena. Mas, habituada a esta característica do Paraíso – os galanteadores são como as marés, vão e vêm e nunca ficam muito tempo – regressou a casa resignada ao facto de que provavelmente nunca mais lhe iria pôr a vista em cima. Enganou-se.

Dois dias mais tarde lá estava ele outra vez. Quando o viu caminhar pelo areal fora na sua direcção, o coração pulou-lhe dentro do peito. A cena repetiu-se. Mas dessa vez foi ela quem se foi embora. Caramba, ele apareceu muito tarde e ela estava com frio e com vontade de fazer xixi. Deixou-o no areal, mas na esperança de que ele a seguisse até casa. Não seguiu. Ela ficou francamente desiludida. À noite fantasiou uma história de amor entre os dois. Desejou ardentemente que ele regressasse.

No dia seguinte, como ele não aparecesse, voltou para casa e regressou à praia para ir passear. Foi pelo varandim de madeira. E não é que ele estava precisamente lá sentado, provavelmente à espera dela?! Olhou-o, murmurou para dentro "Não posso acreditar nisto..." e desviou o olhar. Ele fez exactamente a mesma coisa, não sabemos o que terá murmurado interiormente, mas se for conquilheiro algo do género "C......o!" Ficou com a impressão de que ele era mais velho do que imaginara e desiludiu-se. Ao contrário da amostra de Hannibal Lecter de alguns dias atrás, desejou que ele a tivesse seguido, mas isso não aconteceu.

Mas no dia seguinte lá estava ele novamente. Observou-o com os olhos escondidos pelos braços cruzados sobre a toalha. Era realmente um Delfim. Tinha corpo e jeito de Delfim. Mas o rosto era mais velho do que o corpo, como acontece com todos os conquilheiros. As agruras da vida de mar têm esse efeito. O Delfim tem corpo de vinte anos mas um rosto indefinido de trinta misturado com quarenta, que lhe dá um ar estranho. Dessa vez não se conteve e soltou umas risadas que ele deve ter ouvido porque o viu rir-se também. O problema é que ela e o seu Delfim não estavam em sintonia. Ela gosta das coisas devagar, com sedução. O Delfim, fiel à sua condição de conquilheiro, quer ir directo à acção. Ela levantou-se para ir tomar banho e para que ele a apreciasse. Mas ele deve ter interpretado aquilo como uma tampa, porque enquanto estava no mar, viu-o levantar-se decididamente e ir embora, mal humorado. Praguejou. Chamou-lhe nomes interiormente e exteriormente. Ele nunca os ouviria. Sacana! O Delfim, por seu lado, estava possesso. Viu-o falar com dois homens no varandim de madeira, levantar os braços, acenar e partir. Nunca mais voltou.

Ela tem saudades dele. Bastantes. Quer a sua figura sentada no areal, magra e desajeitada, sem saber o que fazer aos braços e às pernas. Quer as suas mãos a acenderem um cigarro para fazer tempo e poder olhá-la mais um bocado. Quer aquela figura em contra-luz, recortada no sol das 4 da tarde, o boné enfiado na cabeça e os óculos espelhados que se viram de vez em quando na sua direcção e a sua boca que sorri. Gosta da sua linguagem corporal, não sabe porquê. O seu corpo franzino desperta-lhe instintos poéticos. Se ele não fosse burro nem estúpido, poderia encontrar nos seus braços uma enseada calma e apaixonada. Mas as coisas nunca são assim. Só nos filmes de Hollywood. E o Paraíso está muito longe de Hollywood.

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