segunda-feira, 15 de junho de 2009

MURMÚRIOS DE AVALON XVIII

O Pintor Que Estava Positivamente Farto de Pintar
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O Pintor dançava. Era uma dança estranha, surrealista, intensa, quase brutal, como as suas pinturas. Tinha um cigarro colado ao lábio inferior e havia cinza espalhada em redor da gigantesca tela estendida no chão do estúdio. Mas a cinza não era a única coisa que manchava o chão. Enormes jactos de tinta e manchas de tons ocres sarapintavam o chão, a própria tela, as suas calças de ganga, os seus braços de mangas arregaçadas e os seus sapatos castanhos. O Pintor parecia estar mergulhado num transe privado perigoso de interromper, como um sonâmbulo que não se deve acordar. Por isso, o Escritor, que conhecia este Pintor e a sua paixão feroz, permaneceu encostado a um canto do estúdio, tentando não mexer um único músculo.
A certa altura ouviu uma voz grave e rouca perguntar:
"O que é que achas?"
Piscou os olhos. Mais alguém estava na sala e ele não tinha reparado? Mas não, era o Pintor que o indagava.
Parou a sua estranha dança e ficou a olhar para ele, do outro lado da tela, tinta preta a escorrer de um enorme pincel, a escorrer pelas calças abaixo, sem que isso parecesse importuná-lo.
"Então?", repetiu, "O que achas?"
O Escritor aproximou-se a medo. O que é que ele achava??!! O que é que ele achava? Como poderia opinar sobre qualquer coisa, por mais insignificante que fosse, que este Pintor tinha criado? Impossível. Loucura. Nem se atreveria. Quando se aproximou mais, engoliu em seco e o som foi audível no estúdio. Aquilo estava longe de ser algo insignificante. Era uma das maiores obras primas do mundo.
Olhou para o Pintor e engoliu outra vez em seco. Soltou um sorriso silencioso, sem saber o que dizer de todo. Com medo de dizer qualquer coisa que enfurecesse o outro.
"Está assim tão mau?"
"Não! Não! Claro que não! Adoro isto. Adoro."
O Pintor sorriu. Era um homem bruto, vivido, intenso, quase um arruaceiro com o seu corpo forte e rude, o seu sorriso fácil, a sua atitude de constante desafio perante o mundo.
"Ainda não está pronto. Nem eu sei o que isto é."
"Mas sei eu."
"Hmmm. Sabes? Sabes mais do que eu, então."
Seria seguro prosseguir este diálogo? Achou que o outro tinha arcaboiço suficiente para aguentar a verdade.
"Venho do futuro. Um futuro onde já não existes. Isto estará exposto no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque e será uma das suas peças mais valiosas."
"Uau!", ao mesmo tempo que proferiu aquela onomatopeia, o Pintor riu-se. Depois soltou uma gargalhada e os seus ombros chocalharam intensamente. Atirou o cigarro para o chão e nem se preocupou em apagá-lo com a sola do sapato. Tirou um maço do bolso da camisa e acendeu outro. Ofereceu o maço ao Escritor. Este fez um gesto educado de recusa.
"Vão ser a minha ruína, eu sei."
O Escritor permaneceu calado. Talvez fosse melhor não ir tão longe e revelar-lhe o que seria realmente a sua ruína, precisamente aos 44 anos. Que idade teria ele agora? Parecia uma década mais novo, talvez.
"Estou farto disto. Mas não consigo parar."
"Porquê?"
"Porque é que estou farto ou porque é que não consigo parar?", sorriu, o cigarro no canto da boca. Lançou metade duma lata de tinta castanha sobre a tela, aparentemente num movimento completamente aleatório.
"As duas."
"Estou farto porque isto me consome, me atormenta, não me deixa em paz. Não consigo parar precisamente pelas mesmas razões. Sou uma pessoa intensa, suponho."
"Muito."
"Vou parar?"
"Não."
"E tu, que fazes?"
"Escrevo. E percebo-te, apesar de não estar farto."
"Tens sorte. A porra da arte é um tormento, para alguns."
"Às vezes é um tormento, sim. Como quando não consigo encontrar palavras."
"Certo. Às vezes ando para aqui às voltas e nem sei o que ando a fazer."
"Disseste um dia, não sei quando, não sei se já o disseste, 'Quando estou a pintar, não sei o que estou a fazer. Só depois de um período de adaptação é que percebo o que andei a fazer.' "
"Eu disse isso?"
"Sim."
Pegou no cigarro entre o indicador e o polegar da mão direita e estendeu-lhe a lata de tinta. O Escritor ficou petrificado.
"Espalha um bocado.", e acompanhou o desafio com um abanão da cabeça para um dos lados, como que a provocar o outro. Continuava a sorrir.
"Não me atrevo. Nem pensar!"
"Vá! Anda lá. Atira um bocado para aí."
O Escritor pegou na lata a medo. E fez de propósito para que o lançamento falhasse o quadro e fosse parar ao chão. Mas uns salpicos aterraram num dos cantos da tela.
"Boa tentativa para te safares.", o Pintor soltou nova gargalhada.
O Escritor sorriu, finalmente. O Pintor ergueu as duas sobrancelhas, sorriu, voltou a colocar o cigarro entre os lábios e resumiu a sua dança frenética.
Muitos anos mais tarde, o Escritor haveria de se rir sozinho no meio do Museu de Arte Moderna, a olhar para aquele Ritmo de Outono, tentando recordar-se qual daqueles riscos era o seu.
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inspirado em e dedicado a Jackson Pollock

4 comentários:

Dry-Martini disse...

Acredita que vi a imagem do Pollock logo nos primeiros parágrafos, antes de ver a frase final. Simplesmente delicioso. Adorei .)

XinXin

PS: Lembrou-me uma frase que adoro "Nenhum artista tolera o real" seja pintor ou escritor .)

Guidinha Pinto disse...

Não sei quem é Pollock, mas posso informar-me. Adorei a estória.
Eu não disse que voltaria?

Andrómeda disse...

Thanks, Sherlock. Gostei dessa visão imediata :)

Andrómeda disse...

Guidinha, vale a pena conhecer Pollock :) Obrigada e volta sempre :)