quarta-feira, 9 de junho de 2010

MURMÚRIOS DE LISBOA XCIII

Dignidade ou A Linha de Sintra
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Vitral no Museu dos Jerónimos
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José vai sentado na carruagem e os seus olhos não fixam nada nem ninguém. Apenas a vida, a sua, que a dos outros há muito que deixou de lhe interessar.
Os seus olhos são dois vitrais baços, antigos, cobertos pela poeira da vida, compostos por uma sucessão de momentos sofridos, humilhantes, plenos de injustiças. São os olhos de quem já teve que baixar a cabeça e calar demasiadas vezes, para poder ter que comer.
No seu pescoço magro, com as clavículas à mostra, a fome deixou marcas definitivas.
Há muito que José passou a idade da reforma, mas tem de continuar. Na mochila que repousa no chão entre os seus pés, vão as ferramentas de trabalho e os tupperwares vazios do almoço preparado pela mulher.
José vai sentado na carruagem. Está cansado, muito cansado, mas não pode parar. Leva os dedos aos lábios africanos grossos e limpa mecanicamente os cantos da boca que nunca sorri.
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Por vezes observa a mulher atarefada na cozinha, de roda dos tachos e das panelas, o avental envolvendo as ancas largas e cheias. Por vezes, encostado à soleira da porta, José sorri a olhar para ela. Nunca com a boca. Apenas com o fundo dos olhos opacos. Há muito tempo que não sorri para fora. Esqueceu-se como.
José vai sentado na carruagem e levanta-se na sua estação. Sai devagar, mal podendo com a pesada mochila.
Sai da carruagem, o tronco ligeiramente inclinado para um lado, as pernas abertas arrastando-se a custo com alguma mazela crónica, até um dos bancos de plástico.
Senta-se. E olha de novo em frente, perdido na sua vida.
Há mais um comboio para apanhar antes de chegar a casa. Há mais um dia que é preciso terminar, a custo.

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