domingo, 8 de julho de 2007

OS LIVROS DE ANDRÓMEDA - PARTE I


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Gente de Dublin
James Joyce
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"Irmãs
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Não havia esperança para ele, desta vez: era o terceiro ataque.
Todas as noites, ao passar por casa dele (era em tempo de férias) eu me punha a observar o rectângulo luminoso da janela e todos os dias reparava em como aquela luz era mortiça e sempre igual. Se ele tivesse já morrido - pensava eu - havia de se ver na cortina obscurecida o reflexo das velas. Por essa altura, já eu sabia que era costume colocar duas velas à cabeceira dos mortos. Muitas vezes ele me dissera: "Já não duro muito", mas supunha que dizia aquilo por dizer. Agora sei que tinha razão. Todas as noites, quando olhava para a janela, murmurava mansamente para comigo próprio a palavra paralisia, que soava então aos meus ouvidos como um termo singular, tal como me acontecia, na geometria euclidiana, com a palavra gnómon e no catecismo com a palavra simonia. Mas, agora, soava dentro de mim como se fosse o nome de um ser maligno e tresandando a pecado. Enchia-me de terror e, contudo, ansiava por me aproximar dela e por contemplar o seu mortal poder de destruição."
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Viver sem ler um parágrafo que seja escrito por James Joyce, esse colosso brutal da literatura mundial, é como viver sem nunca ter realizado nenhum dos míriades de pequeninos, insignificantes, naturais gestos que nos tornam humanos. Ou seja, é contrariar a ordem natural das coisas. Porque foi sempre sobre isso e nisso e com isso que Joyce construiu a sua arte única.
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Gente de Dublin podia ser gente de qualquer lado, de qualquer cidade, vila, aldeia, país deste mundo. Gente de Dublin é sobre pessoas, é sobre a condição humana. E ler a condição humana através dos olhos e dos dedos de Joyce é um privilégio avassalador. Desenganem-se os que pensam que vão encontrar histórias fantásticas, repletas de ideias ultra originais, com finais surpreendentes. Não … Joyce escreve sobre a vida, a vida do dia-a-dia, a vida de todos nós, levando-nos numa viagem que espreita por janelas e ouve conversas, palavra por palavra, tecendo um retrato meticuloso, profundo e maravilhoso na sua simplicidade quase científica, da vida corriqueira, das pessoas que não são heróis, mas apenas pessoas comuns, de nós. Mas a forma como ele escreve estes pequenos nadas que são a nossa vida é … como se reconstruísse o mundo com palavras.
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Mais tarde, aí sim, Joyce escreveu dois romances impossíveis – Ulisses e Finnegans Wake. São dois trabalhos portentosos, arrasadores, revolucionários e muito controversos. Neles ele desconstruiu todas as regras que havia para destruir e tornou a reconstruir as suas próprias regras, inconcebíveis, inimitáveis, ainda hoje incompreensíveis em muitos sentidos, porque julgo que estavam muito à frente ainda até do nosso tempo. Com Ulisses ele próprio disse que se uma catástrofe arrasasse Dublin subitamente, seria possível reconstruí-la meticulosamente com base apenas nas descrições do seu livro.
A sua escrita inovadora foi já comparada ao que Einstein fez na ciência com a Teoria da Relatividade e diz-se dela que é como um organismo vivo, que se move literalmente, transformando-se e renovando-se de cada vez que é lido, como se as suas palavras e a forma como ele as utilizou estivessem imbuídas de uma seiva orgânica que brota das páginas e cresce juntamente com o leitor - ele foi um dos expoentes máximos da técnica literária "fluxo de consciência" que utiliza precisamente o pensamento do personagem interconectado com a narrativa, de forma que muitas vezes não se distinguem.
Para mim (do que li até agora), ele foi quem mais se aproximou daquela que eu penso ser a utupia das utupias na literatura – tornar o espaço entre a ideia pensada e a ideia que acaba gravada pela mão no papel, o menos distante possível. Existe sempre um elemento de corrupção nessa passagem, porque a linha de construção do pensamento no interior da nossa mente é totalmente diferente da linha construída no papel (para perceber isto, basta fazer uma simples experiência – tentar traduzir um pensamento subitamente para uma folha de papel – quando acabamos de escrevê-lo, percebemos que já não é exactamente o que acabámos de pensar, perdeu-se algo). Gabriel Garcia Marques diz que os melhores livros são sempre aqueles que nunca foram escritos :) (talvez porque permanecem intactos dentro da mente).
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Arrisco dizer que James Joyce foi o Escritor de todos os escritores e que a literatura lhe deve coisas que ainda mal consegue compreender - e não digo isto só porque ele era irlandês ;)
E vou—me calar porque seria preciso um ABC inteiro só para Joyce.
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Este livro de contos é uma delicada, pequena e preciosíssima jóia de um escritor mais do que genial, não há palavra para o descrever. E por isso vou usar uma das muitas palavras que James inventou – farfar (feiticeiro) :)
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1882-1941

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