sábado, 21 de dezembro de 2013

Macro Secrets 207

 

There's always SOMEONE
who is the exception to every single
rule of our own ... right?

sábado, 14 de dezembro de 2013

PALAVRAS EMPRESTADAS 90



David: "O nosso casamento morreu devido à sua saúde. A felicidade é uma massa paralisante. Defendemo-nos, mas finalmente sufocamos."
 
David: "Todas as mulheres adoram casar."
Marianne: "Que ingenuidade. É muito ingénuo para não perceber que uma mulher não quer sentir-se como esposa, mas sim como mulher."
David: "E como é que isso funciona?"
Marianne: "Isso é o que um homem determina."
David: "Um trabalho a tempo inteiro para milionários."
Marianne: "Um passatempo para Homens."
 
* Marianne: "O homem adulto é raro. Uma mulher escolhe a criança que lhe dá mais proveito."
 
* David: "Afinal o que é o amor? Um esgar vigoroso que termina num bocejo."
 
in "Uma Lição de Amor" - Ingmar Bergman

sábado, 30 de novembro de 2013

MURMÚRIOS DO MUNDO V

Louis

Louis e a mulher viajavam no autocarro do sightseeing lá em cima e lá atrás, precisamento ao lado do único lugar vago que eu fui ocupar. Precisava de o usar como uma espécie de boleia, para me deslocar apenas duas paragens e sair o mais próximo possível da High Line que me conduziria o mais perto possível do cais onde se encontrava o meu destino final - o cruzeiro que me transportaria numa das viagens mais fantásticas de Nova Iorque - a Circle Line, em redor de Manhattan e através do cálido final de tarde, o mágico ocaso e a deslumbrante noite.
Mas para lá chegar ... para lá chegar tinha de sofrer um bom bocado. As coisas boas custam. Eu estava, ainda para mais, apreensiva. Tinha que andar imenso, os meus pés estavam cobertos de bolhas e tinha que me aventurar numa zona completamente desconhecida, zona industrial próxima das docas, sem saber que perigos me esperavam. Agora pergunto-me porque raio não me meti num táxi ... Mas também concluo que ainda bem que não o fiz porque fiquei a conhecer mais uma zona da cidade e ganhei uma carapaça de guerra - conquistei mais um bocado da selva completamente sozinha, sem me perder e sem fraquejar.
O guia do autocarro olhara-me desconfiado quando lhe expliquei o shortcut que pretendia fazer. O autocarro não passava perto do cais. Sim, mas eu quero apanhar a High Line e aproveitar para segui-la até o mais perto possível do cais. "I see what you mean.", disse-me, já a ficar conquistado. Mas é uma longa caminhada. Eu sei, respondi-lhe, tenho umas 4 horas para matar, portanto ... "Ok. I'll tell you when to get off." E lá fui eu de boleia até uma esquina onde o autocarro não era suposto parar. Foi o meu presente pela minha esperteza. Uma das formas mais rápidas de se conquistar um nova-iorquino é mostrar-lhe que somos inteligentes e ensinarmos-lhe algo sobre a sua própria cidade. Eles acham que sabem tudo sobre ela, mas ficam sempre quase em êxtase quando conseguem descobrir mais um pormenor insuspeito. Ao contrário de outros cidadãos do mundo, o nova-iorquino não se sentirá ofendido, humilhado ou incomodado. Assimilará este novo dado com alegria e integrá-lo-á no seu conhecimento enciclopédico da cidade para o usar o mais rapidamente possível noutra ocasião.
Subi lá para cima e fui sentar-me ao lado de Louis. Pedi-lhe para me avisar quando ouvisse o guia anunciar nos auscultadores a proximidade da minha paragem e foi assim que começámos a falar. Louis fez-me a pergunta que devia andar a fazer a toda a gente que se cruzasse no seu caminho desde que chegara do Canadá, a sua terra natal ... "Do you know where Timbuctu is?" Respondi-lhe que devia ser na Índia. Ele realmente tinha ares indianos, pensei eu, convencida que aquela era a sua terra. Voltou à carga, com um sorriso maroto: "Do you know where Timbuctu is?" Suspeitei que havia ali um punch qualquer e respondi-lhe Paquistão, com medo de o ofender por não saber onde ficava a sua cidade. Insistiu cada vez mais entusiasmado: "Do you know where Timbuctu is?" Desesperada, respondi-lhe que não sabia, a desviar-me subrreptciamente não fosse o tipo ficar mesmo ofendido com a minha resposta. Eu só tinha duas paragens para descobrir onde raio é que Timbuctu ficava e o tempo estava  esgotar-se. A resposta veio rápida e triunfante: "Timbuctu is after Timbucone and before Timbucthree!" e desmanchou-se numa cascata infernal de gargalhadas, ajudado pela mulher e mais dois companheiros sentados à sua frente. Ok ... Eu avisei que os canadianos eram estranhos ... Continuou a rir-se e a repetir aquilo mais umas dez vezes até lhe perguntar de onde era. "Canada!" Pronto, estava explicado ... Mais concretamente de Toronto. Daí também o leve toque índio das suas feições. Perguntou-me de onde eu era:
"Portugal."
"Where?"
"Portugal!"
"Where?"
"Portugal, near Spain!" ...
"Ah! Spain!"
"No! Portugal. Ronaldo!"
"Ahhhh! Portugal!", deve ser da pronúncia canadiana, que eu nunca consigo perceber em que difere da americana. Dantes a palavra-passe era ou "Amália" ou "Eusébio", agora passou a ser "Ronaldo".
Ufa! Falou-me imediatamente do Douro e que já por diversas vezes quisera lá ir. Disse-lhe que deveria ir o quanto antes porque era um país cheio de diversidade, óptimo tempo, óptima comida e, modéstia à parte, óptimas pessoas. Depois despedi-me rapidamente de Louis quando ele me avisou que o guia estava a chamar-me, não sem antes ter de levar com o "Do you know where Timbuctu is?" acompanhado de mais gargalhadas, mais umas 2 vezes ...
A verdade é que Louis me deu ânimo e constituiu um agradável ainda que estranho ... (canadianos ...) prelúdio para a saga que estava prestes a começar. Andei 10 quarteirões até à High Line, atravessei a dita cuja de uma ponta à outra (aí 1,5 km) e andei mais 1 km até ao rio. A meio do caminho uma das bolhas rebentou completamente e ficou em sangue, a raspar no sapato. Não sei como consegui aguentar aquilo. Ou, por outra, sei. Consegui porque ia ver uma das vistas mais deslumbrantes do mundo, vista com que tinha andado a sonhar desde que lá fora a primeira vez com 17 anos. É só fazer as contas ... E depois ... bom, em Nova Iorque, com bolhas ou sem elas, eu não ando, eu pairo sempre alguns centímetros acima do solo, nas nuvens.

sábado, 23 de novembro de 2013

MURMÚRIOS DO MUNDO IV

Zheng

Zheng toca em vários sítios da cidade, mas o seu local preferido é, claro, o Central Park. Ali, rodeado de verde por todo o lado e com a possibilidade de escolher entre vários recantos paisagísticos completamente diferentes, Zheng sente-se mais próximo daquilo que ele imagina seja uma espécie de Paraíso terrestre.
Naquele dia, escolheu o mesmo recanto onde eu acentara finalmente arraiais para descansar e comer um bem merecido e autêntico hot dog nova-iorquino com mostarda, que me fora vendido pela metade do preço daquele que adquirira 24 horas antes, próximo das avenidas ricas - Quinta, Park, Lexington. O vendedor paquistanês julgara que eu o estava a censurar quando comecei a falar-lhe no preço. Depois, passada a desconfiança inicial, lá lhe consegui arrancar um sorriso tímido de satisfação. Em Nova Iorque as pessoas partem sempre do princípio que as vamos agredir verbal ou fisicamente, antes de darem o benefício da dúvida. Para entender os nova-iorquinos é preciso começar por perceber essa primeira regra de ouro e abordá-los cautelosamente, fazendo os possíveis por evitar quaisquer mal entendidos.
Eu tinha-me sentado finalmente, depois de ter andado a deambular pelo parque de lista na mão, à procura de todas as estátuas para fotografar. Os deuses nesse dia não estavam comigo - tinha os pés cheios de bolhas, o tempo estava nublado e por isso péssimo para fotografar e, para cúmulo dos cúmulos, ao fim de 5 anos a portar-se maravilhosamente, a minha Canon tinha dado o berro no que concernia ao AutoFocus. De cada vez que fazia zoom, deixava de focar. Desesperada, comprei o hot dog e sentei-me naquele que me pareceu um local idílico e reservado, para amarfanhar o meu hot dog e descansar.
Tratava-se de um delgado corredor ladeado por alguns bancos de jardim de um lado, e do outro por uma lagoa enorme bordejada por gigantes e magníficos salgueiros chorando ramos para dentro das águas cálidas. O céu nublado reflectia-se no lençol esverdeado, havia uma ponte de pedra do lado direito e de vez em quando passavam barcos a remos com turistas embevecidos. Era um recanto verdadeiramente zen e penso que foi também por esse motivo que Zheng o escolhera.
Já lá estava sentado quando cheguei, a tocar o seu longo instrumento, que não consegui identificar. Era uma espécie de viola comprida de cordas e que emitia um som entre a harpa e a tuba, que me transportava para terras do sol nascente. Observei-o - era pequeno, franzino, amarelado e tinha o cabelo muito preto e curto. Inclinava-se sobre o seu instrumento com devoção e agradecia com um acento da cabeça as moedas que as pessoas lhe iam atirando. Andaria pela meia-idade e parecia um pouco cansado, mas não abatido ou derrotado. Talvez tivesse chegado há pouco tempo ainda fresco e estivesse a juntar dinheiro para cumprir o sonho de uma vida - ingressar na prestigiada Julliard School, responsável pela formação dos melhores músicos do mundo.
Ao fim de um tempo, o seu reportório mudou e Zheng passou das músicas da sua terra natal para melodias ocidentais mais reconhecíveis pelo seu pequeno e passageiro auditório, e que no seu instrumento se transformavam como por magia numa banda sonora de um relato das aventuras de Marco Polo por terras da seda.
Fiquei ali um bom bocado, muito depois de já ter engolido o hot dog, deixando-me mergulhar naquele sonho oriental, que me transportava para um qualquer jardim zen a milhares de quilómetros de distância, no meio da capital mais ebuliente e efervescente do mundo.
Por fim, levantei-me e ao abandonar o recanto deixei cair uma nota de 5 dólares no chapéu que Zheng colocara no chão. Ele sorriu o seu sorriso oriental discreto e, numa voz rouca agradeceu-me num tom de voz efusivo, admirado com o valor elevado da gorjeta. Era pouco para aquilo que ele me tinha oferecido.

domingo, 17 de novembro de 2013

MURMÚRIOS DO MUNDO III

Coffee
 
Naquela primeira manhã em Nova Iorque, quando desci do Empire State Building pela quinta vez na minha vida, estava de tal forma ebuliente, que estava decidida a fazer uma coisa que julgava já não ser capaz. Acabei por não a fazer por culpa de Coffee.
Quando chegamos lá acima, ao topo do mundo, depois de abraçarmos aquela vista extraordinária, sentimo-nos com asas para voar, o coração cheio de ... qualquer coisa inexplicável. Desta vez vieram-me mesmo as lágrimas aos olhos, especialmente quando olhei lá para o fundo e em vez das 2 torres avistei apenas a única nova torre chamada Liberty. Os americanos, na sua maravilhosa e invejável mania de chamarem os bois pelos nomes e darem-lhes desígnios sistematicamemente superáveis, tiveram a lata (que para eles não é lata nenhuma, é uma coisa normalíssima) de nomear a nova torre nascida das cinzas literais das suas irmãs gémeas tragicamente desaparecidas, Liberdade. Como a nobre e lindíssima senhora que dá as boas-vindas a todos os viajantes empunhando orgulhosamente a sua tocha no céu mais azul do mundo, a nova torre chama-se Liberty porque eles querem esfregar na cara dos seus inimigos a sua incomensurável e inultrapassável e infindável sede de vida e de sonho e de impossível.
É por isso que gosto dos americanos. Imenso. Têm virtudes destas, estupidamente apaixonantes, fantásticas, brilhantes, ingénuas.
Encontrei-o no quarteirão a seguir ao Empire. Tinha decidido descer tudo até lá abaixo, precisamente para ir visitar o Ground Zero. Para mim, neste momento da minha vida, é algo que já não faço com facilidade. Depois das 6 sessões de quimioterapia e das 33 sessões de radioterapia que levei há 4 anos atrás, depois dos medicamentos que estou a tomar para me colocarem em menopausa precoce, um dos efeitos sencundários inevitáveis é que o meu corpo já não é o que era. Estou, a palavra que se me ocorre, é espremida. Mas não é bem isto. Os meus músculos estão arrasados. Os meus ossos também. É como se, eu que era tão elástica e flexível, é como se nunca tivesse dançado na vida, raios, é como se nunca tivesse feito exercício nenhum na vida. Estou uma sombra do que era. Ou, pelo menos as minhas células estão. Até os neurónios foram afectados. A memória já não é o que era. Do quarto para a cozinha esqueço-me completamente do que ia fazer.
Mas naquela manhã radiosa de Setembro, o meu primeiro dia em Nova Iorque sozinha, estava tão entusiasmada, não, a palavra é mesmo feliz, FELIZ, que decidira andar aquilo tudo até lá abaixo. Entretanto abordei o Coffee para lhe perguntar se estava a ir na direcção certa. Sim, mesmo na cidade onde as ruas têm números e as avenidas são todas paralelas umas às outras e é facílimo não nos perdermos, eu consigo perder-me um bocadinho. O Coffee estava a vender bilhetes para o autocarro do sightseeing e perguntou-me para onde eu ia. Disse-lhe que ia para o Ground Zero, ele olhou para mim com os olhos arregalados e perguntou-me porque é que eu não ia de autocarro?
A conversa começou assim. Eu queria mesmo comprar o bilhete para 3 dias, ele fez de conta que ainda me oferecia mais um dia de borla, eu fingi que acreditei, e depois atravessámos a rua juntos para ir ao café buscar o troco que o Coffee não tinha para me dar.
Foi nessa altura que ele me perguntou de onde eu era e me disse que era de um país qualquer africano que não me lembro (a história da memória afectada, de qualquer modo desde sempre que nunca me consegui lembrar muito bem de nomes). E depois disse-me que se chamava Coffee. Eu fingi que acreditei. Com aquele sorriso travesso a bailar-lhe nos olhos era óbvio que Coffee inventara aquele nome porque devia ser bem mais fácil dizer aos turistas que se chamava Coffee do que outro nome esquisito qualquer. Além do mais o nome combinava que nem uma luva com o seu tom de pele negro e a sua simpatia. Um Coffee de manhã e tudo fica mais fácil.
Lá fui eu de volta para trás, para apanhar o autocarro do sightseeing e realmente tenho que agradecer ao Coffee. Acho que não era capaz de andar aquilo tudo até lá abaixo. Mesmo com a felicidade transbordante que o meu coração transportava nesse dia.
O Coffee fez-me também lembrar imediatamente duma cena de uma das minhas séries preferidas de todos os tempos - o Hill Street Blues. Um dos polícias (que depois morreu durante a série) chamava-se Coffey e passava a vida a dizer que não era Coffee como o café, mas Coffey com "y".
Não perguntei ao Coffee como é que o nome dele se soletrava, mas a avaliar pelo seu sorriso matreiro, tenho a certeza que era Coffee como o café.

domingo, 10 de novembro de 2013

MURMÚRIOS DO MUNDO II

Lee
 
Não sei o nome dele, mas tinha cara de Lee. Conheci-o à chegada ao aeroporto de New Jersey, a terra de Bruce Springsteen. Imagine-se um Bruce mais velho, mais cansado, mais gordo e menos energético, com uma cabeça totalmente branca e teremos Lee. Lee era grande para cima e para os lados.
Começámos a conversar enquanto esperávamos pelo transfer e fumávamos um cigarro, e divagámos para o que estava eu ali a fazer. Descobrimos que tínhamos vindo no mesmo vôo.
Lee era nova-iorquino a passear por várias capitais europeias, a última das quais fora precisamente Lisboa. Lee tinha ficado alojado perto do Corte Inglês, segundo ele uma zona perfeitamente segura mas totalmente deserta à noite, para sua enorme admiração.
Eu ia fazer a minha terceira tour da Capital do Mundo e ficaria alojada numa zona próxima do Empire State Building, designada Little Korea onde, descobriria mais tarde, polulavam restaurantes e mercearias coreanas num raio de alguns quarteirões e a animação era vibrante até pelo menos à meia-noite. Nunca cheguei a provar comida coreana, pasme-se. A oferta é tanta, que comi todos os dias comida de uma parte diferente do mundo, ao almoço e ao jantar, e não me sobrou nenhum dia nem nenhuma coragem para os acepipes coreanos. Fica para uma próxima.
E ali estávamos os dois, ele a chegar a casa, eu a chegar ao único sítio do mundo diferente da minha casa em que me sinto em casa.
Lee era, como todos os nova-iorquinos, uma estranha mistura de cordialidade com distância. Ao início estranha-se, depois entranha-se, como diria Pessoa. Já estou habituada. Close, but never too close.
Deu-me várias dicas. Que sim, que eu deveria experimentar a High Line, um passeio interessante e grátis - a última novidade da cidade, uma espécie de promenade elevada que atravessa uma longa zona industrial na downtown, isto é, próxima das docas do lado do Hudson River e que proporciona uma perspectiva diferente. O ferry de Staten Island, também grátis. Que não me preocupasse com segurança, desde que não andasse no metro depois da meia-noite. E a ponte de Brooklyn, também grátis.
Quando lhe disse que amava a sua cidade, ele recebeu a notícia como se fosse um facto absolutamente consumado. E nem sequer sorriu ou agradeceu. Os nova-iorquinos sabem que vivem no sítio mais cobiçado e fantástico do mundo. Para eles isso é apenas uma constatação.
Despedi-me de Lee com um aperto de mão. Ele ainda me atirou qualquer coisa em espanhol, mas já não o ouvi, estava a entrar na carrinha do transfer. Ficará no mistério dos deuses, como a última frase proferida por Bill Murray a Scarlet Johanssen no filme Lost in Translation.

sábado, 9 de novembro de 2013

MURMÚRIOS DO MUNDO I

Jamie
 
Jamie é canadiano. Vai sentado ao meu lado no vôo da TAP para Nova Iorque, o meu destino final. Para ele é um trânsito até Toronto, onde vive, segundo ele, num pardieiro com o seu irmão, a cunhada, um par de sobrinhos e um cão. Too many people, diz-me ele. Que veio fazer a Lisboa este rapaz de 35 anos, descendente de imigrantes açoreanos? Visitar a bela capital portuguesa pela primeira vez na vida e, depreendo eu pelo seu discurso e os seus olhinhos de carneiro mal morto, encontrar uma rapariga com quem possa casar e sair do pardieiro.
Desfiz-lhe logo as esperanças, afirmando convictamente que não pretendia casar. Ele olha para mim com uns olhos castanhos rodeados de pequenas rugas sensuais à la George Clooney (a única coisa que apreciei fisicamente nele) muito abertos e confirma com uma interrogação "Não?"
A nossa conversa foi bilingue - inglês e português. Nada a que eu não esteja habituada, já que a minha família do lado da minha mãe sempre foi bilingue, aliás, trilingue (às vezes até quadrilingue, se juntarmos o francês trazido pela Abuelita da sua estadia nas belas terras do Sul de França) - português, inglês e espanhol.
A conversa começou com Jamie a perguntar-me como se chamava o estado onde íamos parar, se New York se New Jersey, aquando do preenchimento daquela folhinha verdadeiramente surreal que nos forçam a completar sempre que nos abeiramos da terra do Tio Sam - entre outras preciosidades, se transportamos alguma espécie de armas ou explosivos ou ainda se contrabandeamos alguma espécie de substância química altamente aditiva. Sendo que mesmo que tivéssemos tido a sorte de passar a polícia em Lisboa com ditos itens, quem seria o anormal que iria pôr a cruzinha no quadradinho do "Yes"???????!!!!! Só se estivesse sob a influência de pesadas cargas das ditas substâncias proibidas ... Enfim ... estes ianques, como dizia a minha Abuelita (que os teve de aturar em S. Francisco quando casou com um e depois designava também os que nós chamamos de bifes com esse pronome), são malucos.
Ianque é coisa que Jamie não é. É canadiano, arraçado de açoreano e, portanto, duplamente estranho. Há algo nos canadianos que sempre me fez esfregar o nariz - nunca sei precisar exactamente o que é, mas que são estranhos são. Para além disso, nunca consigo identificar o seu sotaque.
A conversa continuou por montes e vales que passaram por, e passo a enumerar, Lisboa, Açôres, Toronto, filmes americanos, paisagem aérea, política internacional, história portuguesa (para meu espanto, Jamie sabia mais de história portuguesa do que muitos pirralhos tugas que para aí andam), viagens, casamento, relacionamentos, pais, comida aérea e muitas outras coisas que nenhum dos dois conseguia ouvir com o ruído de fundo do avião ou que já não recordo.
Jamie fez com que as oito horas de viagem até Nova Iorque passassem num ápice, algo que lhe agradecerei eternamente.
Despedi-me dele com dois beijos e a promessa de trocarmos e-mails. Nem ele nem eu tencionávamos cumprir o prometido e ainda bem. Às vezes é bom conhecer e perder pessoas assim, sem traumas pelo meio a não ser uma boa e prolongada conversa que poderá ser retomada algures no ar um dia destes, quem sabe.

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Macro Secrets 206


I AM
a color person

domingo, 27 de outubro de 2013

Macro Secrets 205

 
 

I am not a
Black & White
person

sábado, 19 de outubro de 2013

Mã,
 
Comprei uma sombrinha nova, mas hélas! a sombrinha nova não apara os golpes do vento. Sabes como eu sou distraída, comprei uma daquelas que não dá para enfiar o pau paralelamente ao outro pau-base, de modo a podermos enterrar na areia dois paus e não um. Portanto, levei a nova sombrinha para a praia e nem uma tarde ventosa aguentou.
Voltei à nossa velha sombrinha, que está ferrugenta e com manchas amareladas, mas funciona muito melhor que a outra. Ainda não é desta que me vejo livre dela. Da nossa sombrinha.
 
Encontrei as conchas de madrepérola que deixaste na praia para nós - a cor-de-rosa, com uma leve dentada para mim, a amarela perfeitinha para o Filipe. A minha está dentada porque eu estou em pior estado que ele, eu sei. A minha é rosa por motivos óbvios - sou menina, gosto de coisas de menina e sou romântica. A dele é amarela porque sempre que ele entra em algum sítio entra o sol com ele. São as duas exactamente do mesmo tamanho. Mas sabes, já sei que quando lhe disser que encontrei as conchas e que foste tu que as lá puseste na praia para eu as encontrar, ele vai abanar a cabeça e dizer que lá estou eu com os meus filmes.

Ontem levei um pão inteiro para a praia e passei a tarde a dar de comer às gaivotas. Lembras-te? Este ano havia uma fêmea que era má como as cobras. Atirava-se a todos os bocados de pão, empurrava as outras para fora do seu perímetro, abria as asas e berrava desalmadamente e era a mais corajosa, vinha quase ao pé de mim para reclamar o seu quinhão. Tentei distribuir irmãmente por todos, mas ela comeu para aí uns 10 bocados de pão!
 
Hoje o dia está péssimo. Está daqueles dias em que tu ficavas em casa e aproveitavas para tratar de limpezas, ler e descansar e eu ficava desesperada a olhar para a praia e o céu e a repetir incessantemente que era capaz de ainda abrir para a tarde. Eu era tão chata, não era? Não, eu não era chata, eu era mesmo completamente impossível, e tu tinhas uma paciência para mim ... Provavelmente estarias a dizer-me agora, no teu humor infinito, enquanto eu soltava o meu milésimo lamento, "Vai, vai para a praia e fica lá até abrir. Não vês que está maravilhoso?"
Talvez vá à vila ou a Espanha, não sei. O problema é que às horas a que saio daqui chego lá precisamente na hora do raio da siesta e depois tenho que esperar que as lojas abram e não me está a apetecer muito levar com vento na fuça no ferry. Não sei ... Nem sequer me apetece muito ir lá buscar os camarões tigre.
 
Se o vires, diz ao pai que no outro dia estive uma hora! a apanhar conquilhas na praia. Mas nem fiquei muito cansada. Até veio uma turista perguntar o que eu andava a apanhar e apanhou-me 3 e depois desistiu. Depois veio uma senhora portuguesa, que até me assustou, "Mas você sabe!" Disse-lhe que tinha sido o meu pai que me tinha ensinado. Eram poucas. Ela disse-me, mas olhe, é como costumo dizer, basta uma concha, um coentro e alho e vai tudo goela abaixo. Concordei plenamente. Apanhei uma mão cheia pequena, eram mais as pequenas que as grandes. Ele diria que aquilo não servia nem para a cova de um dente. Ainda por cima, deixei-as esturricar um bocado na maldita placa do fogão. Os coentros ficaram pretos e as conquilhas um bocado duras, mas souberam-me muito bem.
 
Nem te digo o estado em que está a nossa casa ... Ias ficar doente. Mas não te preocupes que a gente trata do assunto. Só tenho tido medo de lá ir porque me lembro de coisas e me parece uma casa fantasma.
 
Quando disseste que era a última vez que vinhas, era mesmo a última vez. A última fotografia que te tirei foi num dia como este, na praia, no meio de uma ventania desgraçada. Estavas triste quando disseste isso. Adivinhavas sempre tudo. Eu também fiquei com esse dom, mas foi-se com o cancro. Acho que prefiro assim. Não adivinhei a hecatombe que aí vinha. Prefiro assim, acho.

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Curiosidades do Paraíso #4

Boa Gente
 
A boa gente, como lhes chamo, é aquela gente que vem para a praia já o sol vai descendo no horizonte. É a gente que não quer ver nem ser vista, é a gente que quer é apreciar a beleza da praia no final da tarde.
É essa a minha hora preferida. Quando o sol começa a ficar menos forte e a mergulhar lentamente para a direita, quando o vento começa a amainar (nos dias em que nos premeia com essa graça ...), quando o mar começa a ficar um caldo azul safira e as ondas são mais suaves, quando as gaivotas se vêm despedir do sol porque tenho em crer que elas pensam sempre que é a última vez que o vão ver.
É então que começa a aparecer a boa gente - os casais mais idosos e ainda apaixonados que se enroscam um no outro na areia, mãe e filha que vêm dar um salto ao areal depois das aulas acabarem, aquele jogger que espera pelo fresco para começar o treino, o senhor que vem passear o cão antes do jantar, a solteirona que vem molhar os pés depois de um dia de trabalho.
É também nessa hora, e se estivera maré a baixar, que aparecem os conquilheiros com as suas redes e os seus fatos impermeáveis e saltitam pelas ondas fora para irem mergulhar as pernas lá ao fundo em busca do acepipe mais tenro e mais petit dos deuses.
Descobri o truque para conseguir enfrentar a ventania e quedar-me nessa hora quieta e sossegada e mágica e até mesmo conseguir tomar um último banho na água safira - basta um pequeno passeio até à última boia (são 9) e regressar, é o suficiente para o corpo aquecer um bocado e ficar à mesma temperatura da água do mar que entretanto aqueceu com as horas. Genial!
 
No paraíso quase todos os melhores prazeres da vida são à borla ou custam muito pouco.
E não têm preço.

terça-feira, 15 de outubro de 2013

Curiosidades do Paraíso #3

Um dia na vida de ...
 
O dia no Paraíso começa por volta das 11 da manhã, com um brunch no terraço do sétimo andar, com vista para toda a baía. Sumo de laranja natural, pão com queijo e fiambre, torrada com doce de laranja e morango e fruta da época – uvas, pêssego ou ameixa. Acompanha a leitura de revistas variadas – este ano ando numa de consulta às últimas tendências da decoração, pois estou a pensar mudar de casa.
Segue-se a higiene matinal, arrumar a sacola para a praia e pelas 12h30, 13h estou a montar arraiais no areal.
Quando está calor, vou imediatamente ao banho e por lá fico. Quando não, aqueço um bocado na toalha qual lagartixa e só depois me aventuro no mar.
Os entretenimentos são variados durante as 3 ou 4 horas que por lá fico: leitura de mais revistas, audição de música no mp3, apanha de conquilhas, construção de catedrais de Gaudi na areia molhada, passeios à beira-mar, ou mais banhos. Tudo isto pontuado por mais breves períodos de descanso, qual lagartixa ao sol. Merenda-se fruta e iogurte porque se está de dieta.
Regresso por volta das 4 ou 5 da tarde, agora que o vento já começa a soprar mais forte e o sol de Outubro já não ilumina com tanta intensidade.
Por vezes vai-se à vila tratar de compras ou espreitar as últimas novidades das poucas lojas existentes. Compram-se cigarros, espreita-se mais um canto do Paraíso e regressa-se a casa. Toma-se um bom duche e lava-se a cabeça ou toma-se um rico e quente banho de gel de chocolate.
Retoma-se à varanda para trabalhar e assistir a mais um pôr-do-sol magnifique – leitura e resposta de mails variados, mais um capítulo da saga que estou a esculpir. Às vezes lancha-se um petit gateau de chocolate derretido com gelado Magnum de baunilha por cima e um chá de cidreira com mel.
Prepara-se o jantar, constituído por refeições já preparadas ou semi-preparadas, que se aquecem no micro-ondas, sopa, fruta, queijo e paté. Lava-se a louça e toma-se um chá ou um cappuccino. Meia hora mais tarde ataca-se o congelador para um gelado de menta Magnum, o fétiche deste ano.
Refastelo-me no sofá da sala, acompanhada em ruído de fundo pelas últimas novidades da Casa dos Segredos, esse antro de degredos por cujo buraco da fechadura gosto de espreitar. Serve para me certificar que, felizmente, ainda pertenço àquela parte da humanidade já em extinção que não pretende ser famosa fazendo alguma coisa ou não fazendo nada, ou ter a sua vida exposta diariamente no twitter, facebook e afins. (Tenho a plena consciência de que estou a entrar em contradição absurda ao escrever estes detalhes da minha vida estival num blog, mas ninguém lê isto, portanto ...). Trabalho mais um pouco no livro, jogo Mahjong e Solitárias no computador, vejo mais um episódio sacado do Game of Thrones ou um filme também sacado. Às vezes ainda há tempo para ler mais um capítulo do "World Without End".
Cama não antes das duas da manhã.
Amanhã há mais do mesmo, felizmente.
Pai

O meu pai morreu 7 meses depois da minha mãe. Sempre que ouvia aquelas histórias sobre velhos casais cujo par não resiste à morte do outro e o segue, por desgosto, ficava sempre na dúvida. Acreditava mas não percebia o como. Como é que isso acontece?
Agora fiquei a perceber. Quando o outro é o centro do nosso mundo, quando o outro é a única coisa que nos mantém vivos, mesmo que seja apenas como uma espécie de bengala em quem nos apoiamos, sem pensar nas consequências, então é fácil morrer por amor.
O meu pai não morreu por amor. Morreu porque ficou sozinho, desamparado na sua fúria, subitamente sem o saco de pancada que toda a vida ali esteve para aparar os seus golpes violentos, insensíveis, egoístas, psicóticos, vazios. O meu pai morreu porque desistiu de viver.
A sua morte fez-me muito mais confusão do que a da minha mãe. A minha mãe não teve escolha. Talvez tivesse se tivesse deixado de fumar mais cedo, mas isso é daqueles “ses” sobre os quais nem vale a pena cismar. O Steve Jobs nunca fumou na vida, era frutariano, ou lá como se diz, e foi da mesma maneira que ela, de forma ainda mais estúpida porque recusou ser operado durante meses que lhe podiam ter prolongado a vida brilhante que teve.
A morte do meu pai foi o suicídio dos cobardes, como Truman Capote disse sobre a morte da sua própria mãe – o alcoól é o suicídio dos cobardes. Vão-se matando lentamente, durante uma vida inteira, sem coragem para darem um tiro nos cornos. Com uma cirrose que recusava tratar, problemas circulatórios que recusava corrigir, dois filhos que recusaram perdoar-lhe uma vida inteira de suplícios indescritíveis e muitas vezes difíceis de acreditar para quem não estava lá dentro de casa para ver, e uma mulher que finalmente deixou de poder aparar qualquer dos seus golpes, o meu pai decidiu morrer.
Podia ter tido uma vida extraordinariamente feliz. Não quis. Se não tivesse querido apenas por ele, eu até compreendia. Mas na sua psicose auto-comiserativa arrastou consigo três pessoas que não tinham culpa de nada. A única culpa que tiveram foi a de terem por todos os meios, durante uma quantidade absurda de tempo, tentado dar-lhe vãs e infrutíferas e ingénuas segundas e terceiras e quartas e quintas e infindáveis oportunidades para se redimir.
Aos olhos do mundo, que não podia ou não queria adivinhar, o meu pai foi um médico que deixou saudades. Tem no seu currículum mais de 3.000 operações. Salvou centenas de vidas, os doentes tinham-lhe uma adoração imensa, os colegas um respeito enorme. Jamais se enganava num diagnóstico que fazia. Talvez ninguém se importasse se soubesse que no meio dessas centenas de vidas, 3 foram por si destruídas lenta e lamentavelmente. Dostoievski perguntou: “Imagina que terias a capacidade de construir um admirável mundo novo, pleno de paz, alegria e felicidade para todos. Mas que para construíres esse mundo, terias de torturar lentamente e até à morte um minúsculo ser. Fá-lo-ias? Diz-me e diz-me a verdade.”
Não sei qual teria sido a resposta do meu pai. Mas sei que foi exactamente isso que ele fez.
Ainda assim, ainda assim, e porque ninguém é totalmente mau ou totalmente bom, o meu pai ensinou-me algumas coisas. Poucas, mas se calhar por serem poucas, ficaram bem gravadas na minha memória.
O meu pai ensinou-me a apanhar conquilhas na praia.
Ensinou-me a gostar de atletismo, ténis, Fórmula 1.
Ensinou-me que aquilo que me separa de um escroque pode ser apenas uma coisa chamada dor. Porque não existem pessoas más, como também alguém disse, existem é coisas más que acontecem às pessoas e que, acrescento eu, as transformam em anjos vingadores e cegos, atentando contra os que lhes estão mais próximos, sem perceberem que é precisamente neles que poderia estar escondida a sua redenção.
Ensinou-me uma das coisas mais importantes que alguém me podia ter ensinado, quando tive o cancro e perdi todo o meu cabelo e estava aterrorizada por ter de sair para a rua com uma cabeleira postiça. Ele disse-me: “Tu não tens que ter medo de ninguém! Tu nem de mim tens medo, quanto mais dos outros.” E essa frase deu-me a coragem que me faltava para enfrentar o mundo na altura mais difícil da minha vida. Precisamente porque foi dita por um sacana, filho da mãe, que me aterrorizou durante mais de metade da minha existência, sem imaginar os danos irreparáveis que me causou.
A última coisa que me disse foi um “Até logo” ao telefone, cheio daquele orgulho que nunca o abandonava. Vivia num mundo imaginário que só ele entendia e esperava ainda que nós regressássemos a casa para lhe fazer companhia, depois da merda toda que tinha feito.
Pai, a ti peço-te uma coisa, se puderes, e porque foi isso que fizeste toda a vida em prol dos outros – dá-me saúde para poder viver e aproveitar a vida como tu não soubeste nem quiseste. Dá-me saúde, por favor. É o mínimo que podes fazer por mim. Eu sei que se me estiveres a ver e a ler, estarás a sorrir e a dizer o que de vez em quando dizias: “Ela é lixada ..."
Tenho a quem sair ... pai.

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

MÃE

"Vou ter tantas saudades tuas."
"Eu sei, eu sei. Mas tens que continuar com a tua vida. Têm que continuar."
Deitei a cabeça no colo dela e aí fiquei a chorar durante um bom bocado, sem me conseguir conter. Eu é que lhe devia estar a dar forças a ela e era ela quem punha os seus braços à minha volta e me afagava o cabelo, numa imagem que ficou para sempre gravada na minha memória, como se estivesse a observar de fora uma pintura - sentada na cama a consolar-me, a minha mãe era a imagem viva de uma Madonna bondosa, plena de amor e sacrifício.
"Tens medo?", perguntei-lhe.
E ela respondeu-me, com o seu humor britânico seco e muito característico:
"Não sei. Nunca morri."
Essa foi a última conversa totalmente racional que tivemos, 4 meses antes de ela morrer com um cancro do pâncreas. A partir desse dia, o dia seguinte ao meu aniversário, porque ela não me quis estragar o dia de anos, assisti à sua lenta degradação física e mental. Era quase imperceptível, e quando dava por mim, percebia que já há uns dias que não conseguia falar com ela como na semana anterior. E depois ficava a pensar, mas quando é que isto aconteceu? quando é que eu tive uma conversa normal com ela? e não conseguia precisar o dia em que ela mudara. A morfina, mais do que o cancro, dá cabo de uma pessoa. É, em última instância, o que acaba por matar o doente. As dores que o cancro dá são tantas que as doses de morfina são administradas com intervalos de 4 horas. Mas depois ela pedia mais, nos entretantos, e fazia chantagem connosco. Meia zonza, afirmava peremptoriamente - "Se o teu irmão estivesse aqui, ele dava-me mais."
E percebi que essa lenta degradação conferida por uma doença mortal como o cancro transforma as pessoas em animais. Animais que agem por puro instinto de sobrevivência e protecção, capazes de tudo para terem a dose que lhes tire a dor excruciante que estão a sentir. A minha mãe já não era a minha mãe. Era outra coisa qualquer, que gemia, e gritava, e implorava, e nos insultava.
Quando se foi de vez, eu estava zangada com ela. E nunca mais me perdoarei por essa fraqueza estúpida. Por ter sido muitas vezes impaciente com ela quando, por exemplo, recusava a comida que lhe íamos dando, sem percebermos que o organismo se estava a fechar e que já não precisava de alimento. A enfermeira explicou-nos, pacientemente, "Os familiares têm tendência a ficar com receio quando o doente não come, porque não percebem que o corpo já não precisa de alimento, está a deteriorar-se." Fui eu quem lhe deu a última refeição - leite quente por uma palhinha, que ela recusava gemendo "Insensível. És insensível." E foram estas as últimas palavras que eu ouvi dela. Fiquei durante largos meses a repetir para mim mesma esta mantra - não lhe devia ter dado aquele leite, eu não lhe devia ter dado aquele leite, eu não lhe devia ter dado aquele maldito leite. Ainda hoje, passado mais de um ano, continuo a recriminar-me por me ter zangado com ela quando sujava os lençóis da cama porque já não tinha forças para esperar pelo penico. Chegámos a mudar os lençóis da cama 3 e 4 vezes no mesmo dia. E eu estava farta ... e já não desejava que ela chegasse ao Natal, como nos primeiros dias em que ela foi lá para casa. Não assim, não naquele estado. Antes que se fosse, rapidamente.
"Quando é que isto acaba?", perguntava-me ela, quase inconsciente, contorcendo-se de dores no remoinho de lençóis. E eu, sem saber já o que lhe responder, dizia: "Acaba quando tiver que acabar ..." Acabou, finalmente, num Sábado à tarde. Escolheu um dia como ela para se ir - um dia calmo e doce e sossegado, um dia em que estávamos os dois por perto. Morreu com o meu irmão ao pé dela, eu estava na sala. E eu pensei que ela também se tivesse ido zangada comigo.
Algum tempo depois vi o filme "Amour" de Michael Haneke. Há uma cena nesse filme, uma cena pungente, em que a personagem principal que está a morrer recusa por todos os meios o líquido que o marido lhe quer dar, chega mesmo a cuspi-lo. O marido, desesperado, dá-lhe um estalo. Talvez haja muitos que não entendam essa cena, porventura, e que a achem demasiado violenta. Eu percebi-o perfeitamente. E fiquei mais tranquila com a minha consciência. Eu nunca chegara a esse ponto. Teria sido impensável chegar a esse ponto. Zanguei-me, impacientei-me, fartei-me, sim, concluí que não tenho queda para enfermeira, nem sequer da minha mãe. Mas sei que fiz o que pude, fiz o que a minha personalidade me permitiu, fiz tudo para que ela se sentisse bem em minha casa, na minha cama, até morrer. Apesar de ter sido das experiências mais difíceis da minha vida, mais difícil ainda do que o meu próprio cancro.
Apesar de tudo, não me consigo ainda perdoar pelos momentos de impaciência que tive. Já passou mais de um ano e ainda não consigo.
Perdoa-me, mãe. Perdoa-me. Porque eu não sou capaz. E, por favor, não fiques zangada comigo.

sábado, 12 de outubro de 2013

Curiosidades do Paraíso #2

Vento

Por um qualquer desígnio da natureza (tem a ver com temperaturas do mar e da terra, blá blá blá), o vento no Paraíso começa por volta das 3 da tarde e pára precisamente à hora em que finalmente decidimos vir embora por já estarmos congelados de frio.
Depois, quando chegamos à varanda do nosso querido apartamento, olhamos lá para o fundo e vemos o areal quieto que nem uma osga na parede e o raio das bandeirolas coloridas dos barcos dos pescadores sem mexerem um milímetro.
Ficamos naquela ... vai não vai ... sacana ... volto? mas já é tarde ... volto ou não volto? ... Raios! Amanhã fico! Palavra de honra que amanhã fico! Nem que neve!!! Grrrr!!!!
...

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Curiosidades do Paraíso #1

Chocolate e Bolas de Berlim
 
As gaivotas do Paraíso não apreciam chocolate. Pelo menos o chocolate americano incorporado em cookies com pedaços e trazidas directamente de Nova Iorque. Fizeram-se de caras e desprezaram completamente os pedaços que lhes atirei hoje.
Uma vez que as gaivotas são as imperatrizes da praia e têm sempre razão em tudo o que decidem fazer, concluo que o problema está no chocolate e não nas gaivotas. Curiosamente no mesmo dia soube que o chocolate é tóxico para os gatos. Pobre Smeagol, que tem comido de vez em quando alguns bons pedaços de chocolate. Portanto, gaivotas e gatos não vão à bola com chocolate. Quanto aos gatos, seja ele de que proveniência for. Já relativamente às gaivotas, é necessário realizar a experiência com outra nacionalidade de chocolate. Ou estou muito enganada, ou duvido que resistam a um bom pedaço do tradicional e muito nacional Regina. A ver vamos.
 
Já o Senhor das Bolas, aprecia turistas jeitosas, com ou sem chocolate. Por acaso esqueci-me de lhe perguntar se também vende essas modernidades que há para aí agora e que consistem em bolas de Berlim com recheio de chocolate. Se a resposta for afirmativa, vou fazer um homem muito feliz, pois passarei a comprar-lhe uma todos os dias. Se for negativa, azar o dele. Comi uma sem creme, as minhas preferidas, e como estou de dieta só penso comprar mais outra daqui a duas semanas, quando estiver de abalada.
Passa dia sim, dia não a cantar o seu pregão: "Bolinhas de Berlim! Com creme e sem creme! Fofinhas e boas. Não fazem mal e não engordam, só alargam." Quando ele diz a última frase, faço um esforço sobre-humano para não me rir, mas não tenho êxito nenhum. Ele já percebeu e por isso, agora sempre que passa, faz questão de fazer coincidir a frase "Fofinhas e boas" precisamente na altura que está a rasar o meu pára-sol.
Só se tiver de chocolate, Senhor das bolas. Já fica a saber. Senão, olhe ... azar. De qualquer modo, muito obrigada, folgo em saber que, apesar de estar com uma barriguinha avantajada, o senhor me continua a achar fofinha e boa. É sempre bom para a moral.

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

SONHO #2

THE DREAMCATCHER



Londres. 25 de Setembro de 2013. O2 Arena. O meu segundo sonho estava prestes a concretizar-se. Cerca das 20h20, com 20 minutos de atraso porque aos deuses são permitidas estas coisas, os Fleetwood Mac subiram ao palco. A 18 filas de distância, levantei-me juntamente com o resto dos milhares de pessoas que aguardavam comigo, e nunca mais me sentei durante as cerca de duas horas e meia que durou o concerto memorável.
Posso nunca mais ver ninguém ao vivo na vida, que fico contente. Acabei de ver 4 deuses em palco, no seu melhor, maduros e exímios. Aliás 5, porque no fim do concerto havia uma surpresa - Christine McVie veio cantar uma canção com os seus ex-companheiros - Don't Stop.
Os Fleetwood Mac cumpriram e superaram todas as minhas expectativas. Cometi uma loucura, paguei uma barbaridade para ir vê-los e aproveitei para regressar a Londres e por lá ficar 4 dias, mas sabia que se não os visse agora poderia nunca mais vê-los. Estão velhos, mas não cansados. De todo.
Stevie Nicks tem, aos sessenta e tal anos, uma voz dourada, encorpada, que amadureceu como só os melhores vinhos podem fazê-lo. Não esperava. Confirma-se, ela não é uma mulher, é uma deusa deslumbrante, um animal de palco sem precisar sequer de se mexer muito. A sua personalidade, as suas roupas de cigana e a sua voz enchem a alma como pouca gente consegue.
Lindsey Buckingham presenteou-nos com vários solos estarrecedores, parecendo ainda ter literalmente vinte e tal anos. Soberbo.
John McVie agraciou-nos com a sua sobriedade discreta e genial.
Mick Fleetwood foi verdadeiramente bombástico, parecia um pequeno gnomo em fúria sentado por trás da sua bateria. Gritava "Are you with me?", numa voz rouca de avô do rock e nós gritávamos a plenos pulmões "YESSSSSSS!!!!!"
Depois de 3 encores, Stevie veio ao palco dizer umas palavras. Disse que ao fim destes anos todos reflectia sobre nós, o público, e percebeu que éramos como aqueles dreamcatchers dos índios americanos. Apanhávamos os sonhos que eles produziam e devolvíamo-los. Foi muito bonito. Outra coisa não se esperava de uma das maiores poetisas que o rock já conheceu.
Regressei feliz e plena. Tive o privilégio de ser uma vez na vida uma dreamcatcher dos Fleetwood Mac.

SONHO #1

IF I CAN MAKE IT THERE ...


Quis que a minha primeira viagem a solo fosse precisamente a Nova Iorque. Se eu conseguisse sobreviver sozinha a Nova Iorque, conseguiria sobreviver a tudo.
Deixo Nova Ioque pela terceira vez na vida. E ao deixá-la de novo, tenho pela primeira vez um vislumbre dela a várias centenas de metros de altitude, de noite. E apercebo-me que ela se assemelha a uma daquelas miniaturas de vidro multifacetado que, atravessadas pela luz, reflectem todas as cores do arco-íris.
Lá está o Empire State Building com a sua aura branca, o Chrysler, com a sua aura azulada, o vermelho dos edifícios onde decorre o novo concurso género Quem Quer Ser Milionário apresentado pelo Ryan Seacrest do American Idol, e as multicores dos anúncios da Times Square. Uma pequenina e deslumbrante jóia colorida no centro da escuridão.
E percebo que Nova Iorque é uma lindíssima, maravilhosa, pequena maçã demasiado madura (para não a chamar "podre"). Porquê demasiado madura? Porque o cheiro de Nova Iorque é o de lixo orgânico, toneladas dele, despejadas todos os dias pelos milhares de restaurantes, empresas, pessoas e turistas que por lá deambulam.
Apercebi-me disso pela primeira vez quando o meu nariz ficou subitamente mais sensível, após uma noite interminável de vómitos causados pela mostarda de uma sanduiche gigantesca composta por 15, 15! camadas de carne de vaca finas como folhas de papel, o ex-libris de uma das mais famosas Delis nova-iorquinas - Carnegie Deli.
Comparei uma vez Nova Iorque a Florença, porque em ambas somos constantemente convidados a olhar para cima - em Florença graças aos seus deslumbrantes tectos pintados e esculpidos pelos mais talentosos artistas da Renascença, em Nova Iorque por causa dos seus canyons feitos de vidro e aço e pedra, como cantam os U2 nesse hino magnífico chamado "The Hands that Built America". E agora poderei estender a comparação também ao cheiro - onde a bela cidade italiana cheira a massa doce acabada de cozer, por onde quer que andemos, Nova Iorque cheira ao extremo do espectro odorífero - comida podre.
Isso tira-lhe o encanto? Jamais!
Basta que nos habituemos. Um dia apenas e nunca mais pensamos no assunto.
E Nova Iorque cumpriu. Sempre. Aquela cidade nunca me desaponta.



Foi muito bom regressar. Primeira paragem obrigatória, já se tornou um ritual - olhar aquela que é para mim uma das maravilhas do mundo moderno: a vista do topo do Empire State Building, esse decano majestoso, sóbrio e eterno que se ergueu apenas por uns tempos de novo mais alto sobre todos os seus parentes. Agora é suplantado novamente pela Liberty Tower que abrirá as suas portas no próximo ano (já tenho mais uma desculpa para regressar de novo brevemente).



Segunda paragem, quase por acaso - o sítio da tragédia. As "footprints" das duas torres desaparecidas são dois poços negros cujo fim não é possível ver e para onde escorrem cascatas de água. No perímetro à volta encontram-se inscritos os nomes de todos os que desapareceram com elas. Rosas brancas enfeitam aqueles que fariam anos nesse dia.



É um espaço de respeito, onde o burburinho da multidão de visitantes é abafado pelo rumorejar dos litros de água que escorrem incessantemente para dentro das pegadas negras. O folheto indica a presença de um ser que poderia passar completamente despercebido - The Survivor, foi o nome que deram à única árvore que sobreviveu ao desastre, que definhou e que depois recuperou noutro local e foi devolvida ao seu sítio. Pequena, verde, amparada por algumas estacas que a protegem, A Sobrevivente permanece como um testemunho comovente e frágil de todos os que se esfumaram nesse dia.



Terceira Paragem - Brooklyn. Atravesso para o outro lado de autocarro para fazer o que nunca tinha feito antes - atravessar a magnífica Ponte de Brooklyn a pé. Demoro cerca de 40 minutos, com algumas paragens pelo meio e muitas fotografias arquitectónicas e paisagísticas no entretanto. O meu coração rejubila mas fica também melancólico. A magnífica vista do skyline novaiorquino ficou mais pobre sem as torres. Talvez seja apenas a impressão de uma mente habitualmente saudosista, mas a verdade é que tenho saudades daquelas duas sentinelas esguias, altivas e quase alienígenas.



Quarta paragem - outra coisa que nunca tinha feito. Qual é a única coisa que não se consegue ver do topo do Empire State Building? O Empire State Building, claro! Então, nesse caso, sobe-se ao Top of the Rock, no topo do Rockefeller Center, para reparar essa falta. A vista é uma novidade para mim e aprovada. É mais baixo do que o ESB e portanto a perspectiva é diferente.



Quinta paragem - fazer uma tour de autocarro à noite. Enquanto o guia italo-americano conta várias curiosidades engraçadas sobre a cidade no seu sotaque demasiado parecido com qualquer dos personagens de Goodfellas, encolho-me de frio e medo das alturas e preparo-me para atravessar a Ponte de Manhattan a algumas centenas de metros do nível da água, a céu aberto. A vista deslumbrante faz-me esquecer completamente o terror que sinto das alturas.



Sexta paragem - missão verde: descobrir todas as estátuas de interesse do Central Park. Missão cumprida, com uma lamentável falta - apesar de ter procurado incansavelmente, e mesmo com indicações de alguns nativos, não consegui avistar a Still Hunt, a pantera congelada que espreita os joggers algures na parte sudoeste do parque. Fica para uma próxima.



Sétima paragem - atravessar o rio no ferry de Staten Island. É de borla e promete uma vista panorâmica sobre a Estátua da Liberdade e a cidade. Quero todas as perspectivas e portanto embarco. O passeio é agradável e é sempre com um sorriso que acenamos a Miss Liberty.



Oitava paragem - aventuro-me, apesar do meu medo das alturas e de voar e ... decido arriscar uma viagem única a bordo de um helicóptero. Sem querer, calha precisamente no aniversário do 11 de Setembro. Embarco com algum receio mas depressa o descontraído piloto me põe à vontade. Mereço ainda uma cereja no topo do bolo - como vou sozinha, ganho um lugar no cockpit, ao lado do piloto. Com uma mão firmemente agarrada ao manípulo da porta, seguro na máquina com a outra mão e disparo sem parar. Estou deslumbrada. Em breve a mão deixa de ter se de agarrar. Não custa nada. É divertidíssimo e muito mais giro do que voar de avião. Desço com vontade de voltar a subir.



Última paragem - antes do regresso, mais uma visita da praxe ao Empire, para olhar a magnífica vista do final da tarde a transformar-se em ocaso e, finalmente, na deslumbrante noite.



Deixo Nova Iorque como sempre a deixo - com uma sensação de plenitude e alegria. Nova Iorque faz-me bem. É, apesar de toda a confusão e loucura ou, se calhar por causa disso mesmo, estranhamente, o único outro sítio (para além de Lisboa) de todos os que já visitei no mundo, onde me sinto em casa. As palavras do escritor Tom Wolfe ecoam na minha mente:
"Pertencemos a Nova Iorque instantaneamente. Pertencemos-lhe tanto em 5 minutos, como em 5 anos."
Comigo isso sempre foi verdade.
I'll see you again, soon.

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

MURMÚRIOS DE LISBOA CXVII

A Deusa da Beleza e o Deus da Saúde

Em tempos idos, a Deusa da Beleza encontrou o Deus da Saúde e os dois apaixonaram-se. Eram ambos muito belos, exemplares magníficos da sua espécie e a sua paixão foi marcada por uma terrível separação. A mãe da Deusa da Beleza levou-a numa viagem marítima para uma ilha no meio do Mar Mediterrâneo, para longe do desesperado Deus da Saúde. Escreveram-se longas cartas amorosas durante alguns meses e encontraram-se algumas vezes, pois não podiam ficar separados durante muito tempo. Até que, finalmente, conseguiram o que pretendiam - desposaram-se numa cerimónia magnifica, com toda a pompa e circunstância, para a qual foram convidadas todas as famílias do reino do Deus da Saúde.
Mas as coisas cedo começaram a correr mal. O Deus da Saúde era orgulhoso, altivo e psicótico, enquanto a Deusa da Beleza não possuía a personalidade para lhe fazer frente. Era doce e bondosa, mas também um pouco fútil e muito inexperiente. Estava também desesperada, pois corria o risco de ficar sozinha e ter de se desenvencilhar no mundo sem auxílio. A mãe estava prestes a casar pela segunda vez, após a morte do primeiro marido e não desejava levá-la a reboque para o outro lado do Atlântico, onde pretendia celebrar as suas segundas núpcias em voluptuosa paz. A mais nova de quatro irmãos, a Deusa da Beleza era a mais frágil e submissa e viu no Deus da Saúde o seu barco de salvação. Aceitou o seu pedido de casamento, sem imaginar que ele lhe mentira ao afirmar que viveriam os dois sozinhos num lindo palácio que ela poderia escolher. Em vez disso, permaneceram toda a vida com a mãe do Deus da Saúde que, para além de ser mentirosa, velhaca e invejosa, odiava a sua nora.
Os anos foram passando. O Deus da Saúde era mimado e prepotente e habituou-se a tratar a sua bela esposa da mesma forma que tratava a mãe. Tiveram duas crianças, uma rapariga e um rapaz, que sofriam também a despotice do pai. Era irónico, mas enquanto a Deusa da Beleza tinha o dom do amor e da vida, o Deus da Saúde espalhava o deserto inóspito da morte mental na sua própria casa, enquanto por todo o reino as suas mãos de ouro conseguiam soprar vida nos corações e nos corpos dos seus súbditos. E toda a gente o amava e respeitava, sem imaginar o engodo que acontecia debaixo dos seus narizes. E todos desconheciam os milagres de vida que a discreta Deusa da Beleza ia espalhando no seu pequeno, negro ninho destinado aos seus dois filhos.
Apesar de todo o sofrimento, o espírito da Deusa da Beleza conseguiu durante longos anos ser mais forte do que tudo e continuar a espalhar a beleza e a vida pela vida dos seus dois tristes filhos, salvando-os da loucura e da destruição totais. Enquanto isso, à medida que o tempo passava e a esperança de que o pai se modificasse se desvanecia dos seus corações, e apesar de todo o amor que recebiam da mãe, os filhos do Deus da Saúde aprenderam o que era o ódio e odiaram e desprezaram o seu carrasco.
De fora, parecia a todos que eram uma família feliz. A alegria eterna da Deusa da Beleza, a dissimulação do Deus da Saúde e o terror silencioso dos seus filhos disfarçavam o sofrimento que se vivia nos seus domínios.
Até que a velhice, o cansaço e a doença venceram a Deusa da Beleza. E nem mesmo o amor imenso que sentia pelos seus filhos ou as mãos de ouro do seu esposo conseguiram salvá-la. A Deusa da Beleza pereceu e deixou atrás de si uma tristeza, uma saudade e uma solidão imensa nos corações e nas almas dos seus filhos e do seu esposo. Alguns meses mais tarde, apesar de tudo o que se passara nas suas vidas, o Deus da Saúde seguiu a sua esposa e definhou também até à morte.
Ainda em vida, o Deus da Saúde preparara um mausuléu resplandecente para repousar junto dos seus. Mas os filhos não respeitaram as suas indicações e colocaram a Deusa da Beleza lá dentro, sozinha. Irão fazer-lhe companhia, um dia.
Hoje a Deusa da Beleza repousa numa rua ensolarada, com vista para o rio. O Deus da Saúde está a algumas ruas de distância, num muro ensombrado. Foi assim que o filho quis. A filha acatou, mas pensa que talvez isso seja redundante, que talvez os dois estejam finalmente, verdadeiramente, profundamente juntos, algures num qualquer Olimpo. E que tenham deixado as coisas terrenas e vis para trás. É o que ela mais deseja, porque detesta finais infelizes.

Dedicado aos meus pais.

domingo, 6 de outubro de 2013

ÓRFÃ

Achava que tinha parado de escrever neste blog.
Parei por diversos motivos, o mais importante dos quais julgo que porque simplesmente perdi a pica. Aconteceram muitas coisas na minha vida também, a maioria das quais terríveis. Mas não foi por causa delas que parei de escrever, quero acreditar. Nunca nada me fez parar ... de escrever. Deixei, por isso, o último capítulo em aberto - ia cumprir os meus sonhos. Achei que era uma boa forma de ... acabar. Porque ia mesmo cumprir os meus sonhos e é o que estou neste momento a fazer. A par das coisas terríveis que me aconteceram, também aconteceu uma muito boa. Sou livre, para fazer o que bem me apetecer. Decidi, por isso, deixar de sobreviver e passar a viver. A vida é demasiado curta e agora tenho, felizmente, a possibilidade de fazer o que a maioria de nós sonha uma vida inteira.
Julgo que a principal razão para deixar de escrever aqui foi porque sempre achei, passados os anos iniciais de ingenuidade absurda, que ninguém me lia. Havia alguns que eu conhecia e que me conheciam, que de facto liam isto. Mas eram muito poucos e ao longo do tempo perdi completamente a noção de ser lida. Parei por esse motivo. Para quê escrever para uma audiência ilusória? Para quê enganar-me a mim própria? Para quê gastar dedos e tempo?
Esqueci-me de um pormenor. Um pormenor muito importante.
Há pouco tempo reflectia sobre o meu papel nesta vida. Que quero eu realmente fazer? Que continuo eu realmente a querer fazer, depois de tudo o que me aconteceu, depois de todas as reviravoltas tremendas com que a vida me presenteou? Agora, que não preciso de fazer nada para pôr pão em cima da mesa, que continuo eu a querer realmente fazer? Nada?
A resposta foi muito simples - escrever. Aconteça o que acontecer, continuo (felizmente, suspirei eu de alívio!) a querer escrever. Mesmo não precisando de o fazer. Porque, percebi eu, escrever é aquilo que me define, mesmo que o resto do mundo nunca venha a conhecer essa minha característica intrínseca. Escrever constrói-me, reconstrói-me, produz-me. E uma imagem muito nítida e interessante assomou-me ao espírito. As palavras que eu esculpo todos ou quase todos os dias, são aquilo que verdadeiramente me faz ser o que sou. As palavras que eu utilizo constantemente, as suas diversas e infinitas combinações que eu escolho, é como se me redesenhassem infinitamente neste mundo. Assim, o que escrevo é o que sou e o que sou é o que escrevo.
Por esse motivo, concluí, não importa realmente se alguém lê este blog ou não. A partir de uma certa altura, há alguns anos atrás, passei a utilizar o blog não para esses possíveis, hipotéticos outros, mas para mim. É mais fácil imaginar que alguém me lê se as minhas palavras estiverem a ser publicadas algures num espaço virtual comum que faz parte de uma aldeia global imensa e eterna. É mais fácil escrever melhor se imaginar que estou a escrever para alguém que me lê, do que se simplesmente anotasse estes pensamentos num diário privado que ficasse guardado dentro de uma gaveta ou num ficheiro no meu computador.
E é isso que eu quero - escrever melhor.
"Escreve! Escreve! Escreve!", sussurra-me o Pessoa, sempre.
"Mas escreve bem, pelo menos.", adverte-me o Joyce, também sempre.
Há pouco tempo o meu irmão perguntou-me: "Agora somos órfãos?" Respondi-lhe que nunca tinha pensado nisso nesses termos. Mas, sim, de facto, acho que sim, somos órfãos, acho que é essa a definição técnica acertada.
"Órfãos ...", repetiu ele, sem desenvolver. Mas nas suas reticências percebi uma infinidade de coisas. Percebi todas as coisas terríveis que estamos habituados a associar historicamente a essa palavra.
Estou neste momento no meu Paraíso. As suas águas cintilantes de diamantes ofuscantes de luz brilhante devolveram-me um pouco do muito que o furto das hormonas a que fui submetida me roubou. Somos, com efeito, reféns da tabela periódica, algo que já um dia afirmara em reflexão sobre outro assunto diverso, mas que agora posso constatar na pele. O Paraíso mostrou-me que não quero ser órfã da escrita.
E, portanto, aqui estou de novo.
A escrever.
Melhor do que ontem, espero.

segunda-feira, 10 de junho de 2013

Macro Secrets 204


 


My present purpose in life:
Fulfill my dreams 

domingo, 9 de junho de 2013

PALAVRAS EMPRESTADAS 89



"I am not going to poison you. I wouldn't do that to the food."
Hannibal Lecter em "Hannibal" (Série TV)

Deve ser a deixa do ano. PERRRRRRRRRR........FECT

sábado, 8 de junho de 2013

PALAVRAS EMPRESTADAS 88



"A family is like a gun, you point it in the wrong direction you're gonna kill someone..."
Matthew em "Trust" - Hal Hartley