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Estava tudo errado. Ninguém a avisara. Ninguém a preparara para isto. Alguém muito sádico havia escrito e colocado o anúncio no jornal, apenas para fazer pouco da sua pessoa. A Nº 5, talvez. Porque o farrapo de homem que tinha à sua frente devia era estar num ginásio, a montar um cavalo selvagem ou a trepar o Evereste. Em qualquer lugar, menos ali, enterrado naquela varinha mágica com rodas, debaixo dum cobertor de xadrez verde e por trás de um par de óculos escuros sinistros.
E como se tivesse lido o seu pensamento, a Nº 5 voltou, salvando Emily da loucura. O susto que apanhou com o súbito entreabrir da porta provocou-lhe um ataque de soluços que acabou de vez com qualquer pretensão ao humor negro.
"John, o Dr. Rubens chegou."
Ele não mexeu sequer a cabeça. Retorquiu apenas:
"Diz-lhe que já o recebo."
A Nº 5 ia abrir a boca para dizer qualquer coisa, mas aparentemente arrependeu-se porque deu meia volta e fechou novamente a porta atrás de si, secamente.
Emily deixou escapar um soluço sonoro.
"Quer um copo de água?"
Ela revirou os olhos. Teve um súbito desejo louco de lhe arrancar os óculos da cara para se certificar de que ele era realmente cego.
Conseguiu responder:
"Não … obrigada."
Depois ele continuou:
"Surpreendida?"
Ficou calada. Desejava que a pergunta fosse retórica, porque não tencionava responder-lhe. Estava para além de qualquer tipo de reacção. Queria fugir dali para fora. (Vais desistir, é isso? Vais desistir e nem sequer tentaste …).
"Não é a primeira a ficar supreendida, hoje. No entanto, espero que seja a última. Gosto da sua voz. Mas não fique muito vaidosa, porque eu tenho gostos esquisitos. E, para além disso, recuso-me a aprender Braille. Faz-me calos nos dedos.", o tom não podia ser mais cínico.
Emily teve vontade de lhe dizer que tudo não passava de um pesadelo. Nesse instante mudo quis com todas as suas forças que ele pertencesse apenas a um pesadelo seu. E que no seu pesadelo tudo estivesse invertido. Mas controlou estes pensamentos a tempo. A precipitação e a queda para o drama eram o seu forte. Ele permaneceu em silêncio, imóvel, os óculos escuros pregados ao rosto como se estivessem lá colados.
"Mas … mas eu nem sequer lhe li nada. Como é que …"
Interrompeu-a com o gesto brusco de uma mão aberta de dedos compridos:
"Sabe ler, não sabe? Presumo que se leu o anúncio …", a frase acabou com escárnio mal contido.
Emily indignou-se:
"Claro que sei ler! Se não soubesse, acha que …", depois reparou quão ridícula e inútil seria a resposta e calou-se.
"Então volte amanhã. À mesma hora.", fez uma pausa e depois acrescentou: "Está contratada.", aquela última frase foi proferida num tom que lhe pareceu de resignação forçada.
Pôs a varinha mágica a funcionar e passou por ela em direcção à porta, zumbindo. Abriu-a e deslizou corredor fora como uma abelha persistente.
Emily continuou a olhar para o corredor durante um par de minutos, sem se mexer, a boca entreaberta, até a Nº 5 a vir buscar.
"Sra. Sutherland, o Sr. Strat gosta de pessoas pontuais. Não se esqueça disso.", e olhou-a novamente de alto a baixo, como se não quisesse acreditar no que lhe estava a acontecer, "Amanhã esteja cá às seis em ponto, por favor. Falaremos do seu ordenado depois da sessão de leitura, se não se importa."
Nem sequer teve tempo ou presença de espírito para reagir. Quando deu por si, estava novamente do lado de fora da casa, na rua solitária.