1. AO ENTARDECER DE UM DIA
Ao contrário do resto da casa, aquela divisão encontrava-se mergulhada na penumbra da luz difusa das seis da tarde, que entrava a custo por entre os cortinados brancos de uma única janela. Não havia qualquer outra fonte de luz artificial. Tratava-se, aparentemente, da biblioteca, uma vez que todas as paredes se encontravam completamente escondidas por estantes repletas de livros até ao tecto.
"Ao entardecer de um dia muito quente de inícios de Julho, um jovem saiu do cubículo que subalugara na ruela S… e pôs-se a caminhar lentamente, como que indeciso, na direcção da ponte K… Foi sorte ter evitado o encontro com a senhoria nas escadas. O cubículo era na água-furtada de um prédio alto, de quatro andares, e parecia mais um armário do que um compartimento. Pois bem, a senhoria que lhe subalugara o cubículo, com almoço e serviço incluídos, ocupava …" (2)
" 'O quê?', gritou D'Artagnan, 'o seu primeiro padrinho é o Sr. Portos?'
'Sim. Isso desagrada-lhe?'
'Oh, de maneira nenhuma.'
'E aqui vem o outro.'
D'Artagnan virou-se na direcção indicada por Atos, e avistou Aramis.
'O quê?' gritou ele, ainda mais admirado, 'a sua segunda testemunha é o Sr. Aramis?'
'Sem dúvida que é. Não sabe que nós nunca somos vistos uns sem os outros e que somos chamados nos mosqueteiros e na guarda da corte e na cidade Atos, Portos e Aramis ou os três inseparáveis? …" (3)
"Na bela Verona, onde se vai passar este drama, duas famílias, iguais em nobreza, impulsionadas por antigos rancores, fazem com que entre si se desencadeiem novas discórdias, em que o sangue dos cidadãos tinge as mãos dos cidadãos.
Das entranhas fatais destas duas famílias inimigas, e sob funesta estrela, nascem dois amantes …" (4)
Quase soltou um assobio, mas conteve-se a tempo, quando reparou na silhueta que tomou pelo homem, desenhada contra a fraca luminosidade da janela, sentado numa cadeira, por trás de uma pesada secretária antiga onde repousavam alguns papéis e um portátil adormecido. O resto da divisão era apenas ocupada por uma cadeira junto à secretária do lado oposto da janela e por um escadote de biblioteca encostado junto à estante mais afastada da porta. O chão de madeira desaparecia quase na totalidade por baixo de uma carpete em tons encarnados e castanhos, decorada com motivos japoneses.
A Nº 5 teve que repetir, já um pouco irritada:
"Sra …"
Afastou com alívio o olhar daquela visão perturbadora junto à janela e piscou os olhos, tentando sorrir ao mesmo tempo. Parecia-lhe que teria, em primeiro lugar, de agradar à Nº 5, provavelmente a sua digníssima esposa.
"Emily … Emily Sutherland."
Houve um instante mudo em que ninguém falou e em que ela teve a certeza de que se ouviria uma mosca aterrar em cima da carpete japonesa, entre um pagode castanho e um dragão encarnado. Depois a Nº 5 saiu e fechou a porta atrás de si, da mesma forma brusca como aparentemente tudo o que fazia.
Estava sozinha com ele. Suspirou fundo novamente. Não sabia se de alívio, se de expectativa perante o abandono a outra fera mais perigosa. Se calhar a Nº 5 era capaz de não ser tão má como ela pensava … Mas a voz dela irritava-a e produzia em si um efeito que não lhe agradava - de submissão.
Ficou ali especada, sem saber o que fazer perante a silhueta de costas viradas para si - se avançar e cumprimentá-lo, se esperar por uma ordem. O silêncio manteve-se e só nesse instante se lembrou. Caramba …. Ele já ouvira a sua voz. Adeus ensaios. Adeus efeito de surpresa. Adeus primeira impressão. Adeus emprego ... Nem sequer sabia como lhe soara a voz. Os nervos eram tantos que nem sequer se lembrava do som da sua própria voz.
"A toca continuou a direito como um túnel, e de repente afundou-se, tão de repente que a menina nem teve tempo de reflectir e parar antes de dar consigo a descer o que lhe parecia ser um poço muito fundo." (5)
Pigarreou inadvertidamente e logo a seguir arrependeu-se. Porque parecia um estratagema para cortar o silêncio ou incitar o seu interlocutor a proferir qualquer som, mas não era nada disso. Era apenas uma coisa que fazia sempre que estava nervosa e não sabia o que dizer ….
"Emily …", ele nem se dignou virar a cadeira de rodas (reparava agora que era uma cadeira de rodas) onde estava sentado. Ao contrário da Nº 5, a voz dele era agradável, não obstante possuir um tom que Emily de imediato interpretou como o de alguém habituado a que lhe satisfizessem qualquer capricho.
Tomou aquilo como um convite para repetir o apelido, e desta vez conseguiu lembrar-se de controlar a voz para um timbre mais grave:
"Sutherland. Emily Sutherland."
Reparou ao mesmo tempo que a sua voz não era de certeza absoluta a de um velho surdo dependente de um funil colado ao ouvido. Era uma voz jovem. Demasiado jovem? Arqueou as sobrancelhas e engoliu em seco.
Finalmente, ele girou a cadeira na sua direcção, movimento que foi acompanhado por um suave barulho motorizado, semelhante ao de uma varinha mágica eléctrica. Levantou levemente a cabeça, como se quisesse farejá-la e Emily teve a sensação de que ele a olhava de alto a baixo por trás dos óculos escuros. E desafiando toda a lógica, e apesar da surpresa, sentiu nascer-lhe no estômago um ataque de riso, daqueles que por vezes nos surpreendem no meio de uma multidão e contra o qual não há nada a fazer a não ser deixá-lo subir pela laringe acima, atravessar as cordas vocais e libertar-se pela boca sob o som de uma sonora gargalhada.
"Alice pensou que tudo aquilo era muito absurdo, mas eles estavam todos com um ar tão sério que ela não se atreveu a rir; e, como não lhe ocorreu nada para responder, limitou-se a fazer uma vénia e pegou no dedal com a maior compenetração que pôde." (6)
(2) Crime e Castigo - Fiódor Dostoiévski; (3) Os Três Mosqueteiros - Alexandre Dumas (minha tradução); (4) Romeu e Julieta - William Shakespeare; (5) As Aventuras de Alice no País das Maravilhas - Lewis Carroll; (6) As Aventuras de Alice no País das Maravilhas - Lewis Carroll
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