terça-feira, 11 de dezembro de 2007

EM MINHA CASA, NA PONTA DOS PÉS 13 (cont.)

Capítulo 4. WHOOTH?
klfçldkf
Num segundo ponderou os prós e os contras da sua situação. Podia saltar a entrada e arriscar uma viagem de mais de dez quarteirões sem bilhete (e se fosse assaltada provavelmente seria violada ou morta à facada porque não tinha dinheiro, e além do mais não era do tipo de infringir a lei). Podia apanhar um táxi e pagar ao motorista quando chegasse a casa (o problema é que só lhe poderia pagar com o corpo, porque todo o seu dinheiro até ao último centavo estava na mala). Podia caminhar até casa (mas amanhã como é que ia comer?). Ou podia simplesmente retroceder quinhentos passos e suportar a humilhação. Não seria a primeira, nem de certeza a última.
Retrocedeu seiscentos e quarenta e três passos. Era verdade que a besta lhe pregara uma partida. Se fizesse um esforço, conseguia até imaginá-lo na expectativa do resultado final. O tipo era esperto. No entanto, o que a magoara, percebia agora, não fora a partida em si, mas sim o facto de ele ter presumido (e ter acertado na sua presunção) que ela não estava familiarizada com o maldito Joyce. Das duas uma, ou a besta era mais perspicaz do que ela pudera imaginar, ou então subestimava tudo e todos. Emily inclinava-se mais para esta segunda hipótese, mas apenas porque não fazia ideia do teor do livro que acabara de tentar decifrar.
Não duvidava que previamente ao acidente ele não passara de um menino rico e mimado, habituado a ter tudo o que queria provavelmente, quando, onde e como queria. Se Emily fosse um pouco mais culta, ou se vivesse há mais tempo ali, teria chegado rapidamente à conclusão que a sua criatura pertencia à classe mais alta da sociedade, aquela para quem ter um apartamento nas avenidas era sinónimo de mau gosto, ao contrário do que a maioria dos novos ricos pensava. Mas Emily vivia ainda no mundo dos clichés.
Quando voltou a subir os degraus da casa branca estava mais calma. E claro que não sabia o que a esperava. Provavelmente devolver-lhe-iam a mala, acompanhada de um "Lamentamos, mas o Sr. Strat dispensa os seus serviços por falta de fair play." Era até compreensível, ela tinha que admitir pelo menos isso. Comportara-se como uma adolescente nervosa e a sua reacção não tinha desculpa. Corou ao lembrar-se do que lhe chamara. Meu deus … Como é que fora capaz de dizer uma coisa daquelas? Que idiota …
Ou bates à porta ou vais-te embora duma vez por todas. Como é?
Subiu as escadas de pedra e fez soar o batente. Concluiu que não tinha nada a perder, fosse como fosse e que o pior que lhe podia acontecer era nunca mais ter de lá voltar.
A porta abriu-se quase no mesmo instante e Emily teve a certeza que Clara provavelmente teria estado a observá-la do interior. Trazia a sua mala e o casaco na mão e um recado monocórdico na boca estreita:
"O Sr. Strat espera que este pequeno contratempo não tenha comprometido a sua permanência como leitora. Ele lamenta o sucedido."
A sua surpresa foi tal que só conseguiu pronunciar:
"Até amanha, então."
Clara fechou-lhe a porta no nariz, sem retorquir.
Emily ficou especada a olhar para a porta, antes de dar meia volta e se afastar. Olhou para trás. A silhueta dele desenhava-se na janela, e ela teve a sensação que, de algum modo, ele a conseguia observar.
fkldkfç
Não esperara aquela reacção. Esperara tudo menos aquilo. Esperara até um ataque de choro, mas não aquilo.
"Você não passa de um aleijadinho mimado."
As lágrimas de riso transformaram-se em lágrimas de raiva. Como é que aquela pindérica se atrevia … como é que aquela idiota … mas antes que o pensamento se formulasse na totalidade, ele sabia a resposta e a raiva foi-se num ápice.
Aquela pindérica tinha duas pernas. Podia dizer o que lhe apetecesse porque tinha duas pernas. Era tão simples quanto isso. E mais simples ainda do que isso, porque era por causa dessas duas perninhas que ele precisava dela.
Então porque fizera aquilo?
Mas ela também não teria sentido de humor? Seria assim tão susceptível?
Exagerara …
Johann chegou finalmente a um concenso consigo próprio. Ela não tinha sentido de humor, mas ele precisava dela, com ou sem sentido de humor. E agora tudo poderia estar irremediavelmente perdido, porque a idiota não sabia encarar uma piada com desportivismo.
Johann chamou Clara.
"Clara, se ela telefonar diz-lhe que lamento o sucedido e que espero que isto não comprometa a sua posição como leitora."
"Ela não vai telefonar."
"Mas se telefonar …"
"Vai voltar."
"Provavelmente não …"
"Ela vai voltar. Deixou a mala e o casaco aqui."
Johann parou de falar. Nem queria acreditar na sua sorte. Soltou uma gargalhada. Para além de não ter sentido de humor e ter pavio curto, ainda por cima era distraída. Começava a gostar desta Emily. Como é que ela seria quando estava irritada? Punha a mão na cintura e ai de quem não tivesse tampões à mão.
"O que é que lhe fizeste?"
"Um pequeno teste.", não se apercebeu do tom de desconfiança na voz de Clara.
"Espero que esse pequeno teste não resulte numa acção em tribunal."
Johann olhou o vazio, incrédulo. Depois compreendeu. A raiva voltou.
"Mas tu és doida?!", berrou, "Tu não vês que eu nem sequer me posso mexer?!!"
Silêncio. Aqueles silêncios carregados de acusações e desconfianças em que Clara era especialista.
"Estás a ficar velha, querida Clara.", voltou a rir, "Olha para o livro caído no chão."
Clara prescrutou a sala em busca do livro e descobriu-o ao lado da secretária, de capa voltada para cima e páginas abertas e amarrotadas. Uma breve vistoria à capa fê-la largá-lo com repugnância em cima da mesa.
"Idiota.", murmurou.
"Resulta sempre, querida Clara. Lembras-te? O sacana do Joyce nunca falha.”

Sem comentários: