Capítulo 5. CORRESTE POR MINHA CASA DE MADEIRA
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"Por mim vai-se à cidade que é dolente,
por mim se vai até à eterna dor,
por mim se vai entre a perdida gente.
Moveu justiça o meu supremo autor:
Divina potestade fez-me e tais
A suma sapiência, o primo amor.
Antes de mim não houve cousas mais
do que as eternas e eu eterna duro.
Deixei toda a esperança, vós que entrais.
Estas palavras em letreiro escuro
Escritas vi por cima de uma porta;
E disse: 'Mestre, o seu sentido é duro.' " (22)
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Emily voltou, claro. Pensou no pai, no namorado e nos amigos, tão distantes do que queria para a sua vida. Pensou em Amanda, lambuzada todos os dias por decadentes catedráticos babados e arrogantes universitários entezados. E concluiu que valia a pena sofrer todas as humilhações, se isso lhe permitisse percorrer os corredores da biblioteca com a cabeça bem levantada e um sorriso nos lábios.
"Ouvi dizer que é leitora particular do milionário Johann Strat.", pigarreou o vetusto professor de Literatura por cima do seu ombro, uma tarde.
Emily confirmou com o silêncio de um aceno de cabeça e de um par de sobrancelhas arqueadas, por trás dos óculos que comprara para fingir uma miopia inexistente, mas sedutora.
"Pobre coitado. Com tanto dinheiro e atirado para um canto, sem esperança alguma de recuperação. Se quiser …", pigarreou novamente, e Emily notou que ele desviara os olhos por um segundo para o seu decote, "… posso sugerir-lhe algumas leituras."
Compôs o seu melhor sorriso e atirou-lhe uma bofetada de luva branca:
"Não é necessário, professor. Ele aprovou integralmente o programa de leituras que lhe propus. Mas, de qualquer das maneiras, muito obrigada."
E afastou-se lentamente, fingindo consultar o seu bloco, enquanto se dava ao luxo de bambolear as ancas que não tinha na tromba do outro.
Começava a constatar que o poder atraía. E que gostava dessa sensação.
Hoje a Nº 5 trazia um tailleur verde claro aos quadrados. Aquela mulher devia ter uma comissão na Chanel.
"Boa tarde, Sra. Sutherland."
Assim que entrou na sala e depois de ter sido anunciada, Emily balbuciou:
"Queria-lhe pedir desculpa pelo que lhe disse ontem …"
Ele estava junto à janela, como das outras vezes. A bola de pêlo saltitou na sua direcção e empoleirou-se nas suas pernas, como no dia anterior. Emily afagou-lhe o cocuruto, procurando algum conforto e empatia para si própria nesse gesto de carinho oferecido e o animal enlouqueceu. Começou a arfar com a língua de fora e a cauda a abanar freneticamente, o que lhe deu vontade de rir, mas conteve-se. Não era de bom tom soltar uma gargalhada naquele momento, com toda a certeza.
Ele farejou-a e apontou com o queixo para um livro pousado em cima da mesa, ignorando o seu pedido de desculpas.
"Quando quiser, pode começar. Do início."
Emily não soube como reagir. Se insistisse, poderia parecer que o seu pedido de desculpas se destinava apenas a provocar nele uma reacção qualquer e isso soaria a hipocrisia. Decidiu não acrescentar mais nada.
Aproximou-se lentamente e leu em voz alta, como se isso pudesse constituir uma estratégia de defesa:
"Jane Eyre – Charlotte Brontë"
Suspirou fundo, sem se preocupar se o suspiro fora audível. Adorava aquele livro. Pegou nele e sentou-se. A bola de pêlo saltou-lhe para o colo.
"Wolf!", John bateu na varinha mágica com a mão duas vezes. Mas a bola de pêlo hesitou.
"Ele não me incomoda. Se é por causa disso …"
John permaneceu silencioso, como se acentisse e ela abriu o livro sobre o dorso do setter. Começou a ler:
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"Capítulo I
Não havia possibilidade alguma de dar um passeio naquele dia. Tinhamos vagueado, de facto, no pomar despido durante uma hora nessa manhã; mas desde o jantar (Mrs. Reed, quando não havia convidados, jantava cedo) que o frio inverno trouxera consigo nuvens tão sombrias e uma chuva tão penetrante, que qualquer actividade física no exterior estava agora fora de questão.
Isso agradava-me; nunca apreciei longos passeios, especialmente em tardes frias: temia regressar a casa no crepúsculo cru, com dedos das mãos e dos pés enregelados e um coração entristecido pelos ralhetes de Bessie, a ama, e tornado humilde pela consciência da minha inferioridade física em comparação com Eliza, John e Georgiana Reed. Os ditos Eliza, John e Georgiana estavam agora reunidos em redor da sua mãezinha na sala de desenho: ela encontrava-se recostada num sofá perto da lareira e os seus queridos (de momento sem brigarem ou chorarem) pareciam perfeitamente felizes. A mim, ela tinha dispensado a minha companhia, dizendo que, “Lamentava ver-se forçada a manter-me à distância; mas que, até ter notícias de Bessie, e pudesse constatar por si própria que eu me estava a esforçar genuinamente por adquirir modos mais sociáveis e mais próprios de uma criança, ...” (23)
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Lia lenta e pausadamente. Procurou controlar a respiração e, apesar de saber que se ele não fosse cego teria feito muito pior, também sabia que podia fazer muito melhor.
"Emily …"
Parou bruscamente. Pronto, é agora. Agora é que ele viu o erro que cometeu. Estou tramada.
(22) A Divina Comédia - Dante Alighieri; (23) Jane Eyre – Charlotte Brontë
3 comentários:
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