segunda-feira, 9 de março de 2009

MURMÚRIOS DE AVALON VI

O Poeta Cínico
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O Poeta fungou, o cabelo encaracolado e revolto em constante batalha no topo da sua cabeça. O Poeta era temperamental, incongruente e despistado.
Mas o Poeta tornara-se também profundamente cínico. Ele olhava já para as palavras do alto do seu trono, que se fora erguendo durante uma vida inteira de experiências e brincadeiras.
O Poeta perdera a inocência. Achava que já nada o podia surpreender e isso era triste.
Aproximou-se do Poeta com cautela, porque quando aquele se zangava levava tudo à sua frente, incluindo a paz de espírito.
"Procuro uma palavra, já sabes."
"Não - me - fa - les - em - pa - la - vras!!", tonitruou o Poeta, declamando cada sílaba com uma voz cavernosa e forte, como se a quisesse projectar até ao infinito.
"Então queres que te fale de quê?"
"Fala-me ... de tudo, menos de palavras. Estou cansado de palavras, caramba!"
"Mas a tua vida são as palavras. Como podes estar cansado delas?"
"Estou farto delas. Estou por aqui de palavras.", e levou a mão à garganta, simulando um auto-estrangulamento, "Usei-as todas, compreendes? Todas! Não há uma única palavra da língua portuguesa e arredores que eu não conheça. Já fiz as combinações todas possíveis e impossíveis que é possível fazer, como esta, por exemplo. Já inventei palavras. Já joguei com a pontuação de forma ainda mais arrojada que o raio do Saramago. Já troquei, baralhei, tornei a dar, inverti, rimei, desrimei, agarrei, soltei as palavras todas.", e suspirou, baixando os ombros como se estivesse imensamente cansado. Ao mesmo tempo o Escritor reparou que ele o olhava subrepticiamente de lado, como se a avaliar o efeito de todo aquele teatro na sua pessoa.
O Escritor cofiou a barba inexistente no seu queixo e levantou uma sobrancelha. Este Poeta era demasiado prima-donna para o seu gosto.
"Então deves saber qual é a minha palavra, já que as conheces todas."
"Sei lá qual é a tua palavra! Eu sei lá qual é! Sei lá! Desconheço, rapaz."
"Mas se tu não sabes, quem é que vai saber? Tu eras a minha última esperança."
"Lamento, meu rapaz. Lamento profundamente."
"Não achas que estás a exagerar? É impossível teres esse conhecimento todo da língua. É impossível que tenhas já experimentado tudo."
"Duvidas de mim??!! Atreves-te a duvidar de mim, rapaz?!"
"Duvido, sim. Acho que te dás demasiada importância."
"Fala o roto para o nu ..."
"Eu só quero descobrir uma palavra."
"E eu quero ... descobrir um novo alfabeto!"
"E eu que pensava que estava a ser demasiado exigente. Tu queres o impossível!"
"Nada é impossível, rapaz! Nada! Quero inventar uma nova língua. É isso! Uma língua cheia de palavras novas. Melhor ainda, novos sentimentos! Se eu inventar uma fornada de novos sentimentos, terão de surgir outras tantas palavras que os descrevam. Sou um génio, rapaz!"
"Eu contentava-me com uma palavra, no alfabeto existente."
"Lamento, rapaz. Agora vai-te, vai-te! Preciso de me inspirar.", encheu o peito de ar e abanou suavemente os caracóis, como um lutador prestes a entrar no ringue das palavras.
O Escritor saiu cabisbaixo. Ora bolas! Mas que belo idiota que este lhe tinha saído. Vivia há tanto tempo embrenhado em palavras, que já não conseguia ver mais ninguém à frente. Que se afundasse nelas, era o que lhe desejava ... Hmpf!

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