sexta-feira, 4 de maio de 2007

MURMÚRIOS DE LISBOA XXVI

Narciso e o Mestre
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Rio Tejo
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Hoje (aliás, naquele dia, porque eu já escrevi isto há umas semanas) vi o anjo mais belo que já passou por mim nestas paragens. E sei de quem era, porque ainda trazia zonas de tinta fresca espalhadas pelas suas formas.
Foi Miguel Ângelo quem o esboçou e pintou. A marca do Mestre era inconfundível. Era a marca da perfeição, transcendental.
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Andaria pelos 20 e poucos anos. Vestia uma t-shirt amarelo pálido e um blaser de bombazina verde escuro, daqueles cheios de bolsos com botões de metal e umas calças de ganga azuis escuras.
Era moreno, o cabelo curto penteado com gel e aparado na perfeição no cimo da testa, deixando leves madeixas estrategicamente espetadas, para criarem a ilusão do look naturalmente desmazelado. No meio de um rosto oval calculado com um olho geométrico, repousava um nariz propositadamente imperfeito, demasiado grosso, para criar um ponto de convergência numa superfície em que o olhar do mortal comum não saberia onde fixar-se. A boca de lábios finos mas delicados desenhava-se sobre um queixo pequeno e redondo, levemente arrebitado. E em seu redor a barba de um dia ou dois conferia-lhe um ar mais maduro e sensual para rosto tão jovem.
Talvez fosse esse o contraste subtil que fazia com que nos detivéssemos por ali um pouco mais do que era costume. O Mestre conhece todos os truques da percepção …
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As orelhas pequenas encontravam-se na exacta proporção das feições e do ângulo relativo às maçãs do rosto. E depois os olhos, também pequenos e sempre semi-cerrados, como se guardassem duas jóias preciosas e muito frágeis que era preciso proteger a todo o custo da violência de uma luz descontrolada.
Ou então como se o seu portador tivesse a perfeita noção de que só alguns mereciam acesso a tais tesouros.
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Foi complicadíssimo observá-lo. Ele sabia que era belo e agia exactamente como tal – sempre consciente de si próprio, sempre atento ao mais pequeno olhar de reconhecimento.
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As pestanas eram uma maravilhosa penugem dourada que escondia duas estrelas ténues castanho esverdeadas que apenas vislumbrei durante alguns momentos, quando o nosso Narciso abandonou por leves instantes a sua auto-contemplação interior para deitar o olho a uma turista nórdica loira com cara de anjo, que se dispunha a sair no aeroporto.
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De resto, este Narciso fixou o chão durante quase toda a viagem, como se procurasse um lago imaginário de águas transparentes que lhe pudessem devolver a sua imagem. Pensaria certamente no seu Mestre e no que este lhe dissera. Quando terminara a sua obra-prima, Miguel contemplara-o satisfeito mas compenetrado, do alto da sua segurança genial, e pronunciara apenas “És belo.”
E ele não precisou de nenhum espelho para sabê-lo. Olhou o Mestre de frente, mirou-se no reflexo dos seus olhos de artista maior que todos, e soube que era belo.

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