Era estranho, sem ser estranho. Agora que vivia sempre de noite, era como se tudo fosse possível, sempre. À noite tudo parece possível.
Não tinha sido durante a noite que aquela ideia lhe tinha surgido, mas durante uma tarde em que tentava ler a porcaria dum livro em Braille. Não conseguia nem queria atinar com aquilo e arremessou o livro contra a janela, num acesso de raiva que lhe valeu um vidro partido e uma visita do Dr. Apple para lhe prescrever mais uma caixa de Valium.
O Valium não tinha apenas por objectivo mantê-lo mais calmo. Havia as dores nas costas, que às vezes se tornavam insuportáveis devido à posição que mantinha todo o dia na cadeira. Apesar da remota hipótese de recuperação que qualquer pessoa teria certamente agarrado desesperadamente, havia-se recusado a fazer fisioterapia. Era simples. Não queria durar muito mais tempo naquela situação. Queria morrer. Mas desde a última vez que tentara e falhara, adiara a prossecução do seu objectivo. Entretanto, o Valium fora racionado por Clara, depois da tentativa de suicídio, o que lhe dificultara bastante as coisas.
Sentou-se na cama. Era patético. Nem conseguia pôr fim à vida.
Percebeu pelos ruídos da casa que as primeiras horas da madrugada já tinham chegado. Clara levantava-se sempre muito cedo. A empregada já tinha saído para as compras e o motorista já andava na garagem a remexer em ferramentas.
Só assim conseguia perceber as horas. Pelos movimentos dos outros. A sua cegueira era total, caso raro. As manchas que via não se deviam à luminosidade exterior, mas por vezes confundiam-no, quando se esquecia disso. Às vezes julgava ver movimentos onde não havia nada para ver.
Wolf entrou no quarto e saltou-lhe para cima da cama, lambendo-o.
"Tu és o único que provavelmente me entende …"
Acariciou-lhe o dorso repetidas vezes.
"Tu sabes exactamente aquilo que eu sinto. Hein, Wolfy."
O setter lambeu-o novamente e aninhou-se nos seus braços. No passado teria querido brincar. Mas percebera ao fim de pouco tempo que o dono não podia brincar como no passado e resignara-se.
"Hoje vais conhecer a Emily."
Wolf ganiu e fixou o dono, mas não obteve reacção, a não ser um aperto no focinho.
Com o cão podia dar-se ao luxo de ser ele mesmo, não sabia muito bem porquê mas sempre fora assim. Era irónico que o único ser que assistia sistematicamente à verdadeira revelação da sua personalidade livre de qualquer censura auto-infligida, fosse um ser desprovido de consciência de si próprio e, por consequência, sem capacidade para oferecer realidade a essa mesma revelação.
Muitas vezes interrogava-se sobre o que pensariam as pessoas se o vissem como ele era com o cão. E outras vezes interrogava-se sobre o que pensaria o cão, se soubesse distinguir a diferença entre estar sozinho com ele e acompanhado por outras pessoas e se, de alguma forma, o animal teria capacidade para sentir algum tipo de alteração no seu comportamento.
Quando estava com Wolf não era arrogante, mimado, frio, calculista ou sarcástico. Mas assim que entrava em contacto com outra pessoa, todas essas características emergiam como por magia negra, sem que ele pudesse fazer nada para o controlar. E o acidente só viera exacerbá-las ainda mais, como se tivesse também servido para enterrar ainda mais qualquer hipótese de salvação de uma alma atormentada e encerrada em si própria.
"Vamos ver se ela nos consegue ajudar, hein?"
O dia passou devagar. Tentou ouvir um pouco de música na sala, mas desistiu. Depois do almoço refugiou-se na biblioteca, junto à janela com Wolf, que chegou a adormecer no seu colo, por baixo da manta verde.
Quando ouviu o batente na porta, percebeu que tinha adormecido também e que tinha tido o sonho sem imagens novamente. Acordou assustado, transpirado e com falta de ar.