quarta-feira, 14 de novembro de 2007

PALAVRAS ESTÚPIDAS 4

Quando era pequena tinha um sonho – ser muda. É um sonho estranho para uma criança ter, eu sei. Mas eu era uma criança estranha. Invejava os mudos, que não eram obrigados a falar porque pura e simplesmente não podiam mesmo que quisessem fazê-lo e podiam gesticular ou, maravilha das maravilhas, escrever o que lhes ia na alma.
çdlfºçdlf
Sempre fui muito melhor a escrever do que a falar. A falar as palavras enrolam-se-me, saem completamente distorcidas, não são absolutamente fiéis àquilo que estou a pensar ou a sentir e, pior que tudo, as pessoas têm que estar a olhar para mim enquanto o faço, o que só agrava ainda mais todos estes problemas. Quando escrevo parece-me sempre que o que sai cá para fora é muito mais fiel ao que está lá dentro, tenho tempo para pensar e repensar todas as palavras e tenho até timing suficiente para dizer piadas, que é uma coisa que me é muito difícil conseguir se estiver a falar com estranhos (quando estou à vontade com as pessoas tenho momentos de puro brilhantismo parvo ...).
Claro que com o tempo e a idade, lá me habituei a falar e hoje safo-me relativamente bem. Com a experiência e mesmo com a escrita, desenvolvi até uma razoável capacidade de me exprimir comparada com muito boa gente que conheço.
kflkd
Mas ficou sempre aquela melancolia por aquele desejo de criança que me perseguia e atormentava. Sempre que me perguntam qual o sentido que não me importava de perder, respondo prontamente – a fala. Eu sei que não é um sentido, mas é como se fosse.
Em vez disso, sempre fui caixa de óculos até aos 20 e poucos anos. E sofri com isso, como sofrem todos os caixas de óculos. Ou sofriam. Hoje em dia é charmoso usar óculos. No tempo em que eu era criança, usar óculos era o mesmo que ser deficiente mental. Pior que usar óculos, só mesmo ser gordo, ter borbulhas e usar óculos. Isso era a desgraça total. Felizmente sempre fui um palito (em parte graças ao exercício implacável da dança) e nunca sofri de acne, senão acho que me tinha suicidado antes de chegar aos 14 anos.
çglºçflg
Mas adiante. A minha relação com a fala era de tal modo complicada, que havia pessoas que pensavam que eu era muda. E eu achava piada e ria-me interiormente. Porque sabia que as pessoas que me achavam muda eram precisamente aquelas com as quais não valeria nunca a pena perder tempo a falar. La Palisse.
ºçg~ºfçg
Serve este texto para quê? Para constatar uma coisa triste – raramente há pessoas que ouvem realmente o que estamos a dizer. Normalmente as pessoas estão só à espera que acabemos de dizer seja lá o que for que tenhamos para dizer (que não deve ser nada de interessante, de qualquer das maneiras), para que elas possam começar o seu blá blá (esse sim, de um interesse fulcral para a nossa pessoa). Como sempre fui boa ouvinte (por vezes, demasiado até), faz-me impressão isto.
gkfçlg
Faz-me muita impressão que andemos todos a falar sozinhos.

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