domingo, 4 de novembro de 2007

EM MINHA CASA, NA PONTA DOS PÉS 4 (cont.)

Capítulo 2. E A TUA VOZ TAL RIQUEZA
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Assim que começara a ouvi-la, do lado de fora da casa, construíra imediatamente uma imagem mental dela. Ao longo dos meses, tornara-se eficiente naquilo. Aos poucos, a audição fora-se apurando cada vez mais e sabia que tinha agora muito melhor ouvido do que alguma vez tivera. Ironicamente tinha agora o ouvido que deveria ter herdado dos pais. Era uma questão de atenção. As imagens distraem-nos do essencial, ou pelo menos gostava de pensar assim para se poder desculpar da falta que a visão lhe fazia. Mais do que estar confinado à porcaria da cadeira de rodas, sem poder mexer as pernas. Até porque os médicos lhe tinham dito que um dia, com bastante esforço, talvez não fosse de todo impossível recuperar o movimento e poder voltar a andar. Mas a visão era irrecuperável. Mesmo para um homem que se podia dar ao luxo de ser visto pelos melhores especialistas do mundo. Nem valia a pena pensar nisso. E pensar era algo que fazia muito, agora.
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“Ser ou não ser - eis a questão
Se é mais nobre sofrer
Os tiros e as setas do destino
Ou empunhar armas contra um oceano de tormentas
E opondo-se-lhes, pôr-lhes termo? Morrer, dormir
Não mais; e ao dormir dizer que pomos fim
Às inquietações e aos mil choques naturais
De que a carne é herdeira. É uma consumação
Ardentemente desejada. Morrer, dormir;
Dormir, quiçá sonhar. Eis o erro;
Pois nesse sono de morte que sonhos poderão vir ...” (7)
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Começara a ouvir-lhe os passos nas escadas de pedra, através da janela entreaberta. Passos algo pesados e hesitantes. Trazia saltos altos, mas não eram nem tão altos nem tão bicudos como os de Clara. Entre o cessar do barulho dos saltos e o barulho do batente na porta, houve mais um momento de hesitação e um som que lhe pareceu um suspiro, mas que àquela distância era difícil de perceber.
Depois ouviu-lhe a voz e o coração, surpreendentemente, bateu mais depressa. Era uma voz reconfortante, apesar de ter um registo muito baixo e levemente agudo. Teria que a ouvir melhor, na privacidade da casa, sem ruídos de fundo, mas de qualquer das maneiras não tinha dúvidas. Era aquela.
Todas as outras lhe haviam parecido irritantes, ignóbeis até. Presunçosas e ocas. E à medida que os dias passavam ia-se instalando o desespero. Não conseguiria encontrar nenhuma voz que lhe agradasse? Estaria a ser demasiado exigente? Mas não podia ser. Nem que levasse meses até encontrá-la. Tinha construído um som mental na sua cabeça e não acreditava que, entre dezenas e dezenas de mulheres, não houvesse nem uma que correspondesse ao que imaginara.
Clara ia e vinha com as candidatas de trás para a frente e ele percebia pelo som dos seus passos e dos seus suspiros e pelo tom da sua voz que ela ia ficando cada vez mais irritada, à medida que os dias avançavam em direcção à noite. A irritação dela aumentava proporcionalmente à sua própria frustração.
É que para Clara, ele sabia, aquilo não passava de uma fantochada. Lembrava-se bem de quando lhe comunicara a ideia de publicar o anúncio no jornal. Tinha pena de não ter podido ver-lhe a expressão do rosto, porque só o seu silêncio sepulcral já fora suficientemente hilariante e tivera de disfarçar um sorriso, girando bruscamente a cadeira na direcção da janela.
"Mas que ideia é essa?", ouvira-a bater com os dedos de uma mão no braço oposto que devia estar cruzado sobre o peito, pois essa sempre fora a sua posição preferida quando estava prestes a explodir, desde que tinha consciência de si mesmo enquanto gente.
Clara passara a governar a casa quase desde que assumira funções como sua ama. Tinha-se tornado praticamente indispensável, numa casa onde os donos apenas se fixavam durante alguns meses por ano.
Violinistas e por consequência viajantes, os seus pais acompanhavam orquestras de renome em tournées frequentes por todo o mundo. Quando morreram os dois num desastre de avião a caminho de Londres, todos ficaram aliviados pela existência de Clara, que resolveria facilmente o problema da súbita orfandade de uma criança de oito anos sem parentes mais chegados.
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(7) Hamlet - William Shakespeare (tradução livre)

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