sexta-feira, 23 de novembro de 2007

EM MINHA CASA, NA PONTA DOS PÉS 9 (cont.)

Capítulo 3. O MUNDO ERA TÃO RECENTE QUE MUITAS COISAS AINDA NÃO TINHAM NOME

Olhou para o relógio. Cinco e meia. Tinha que se apressar. Senão punham-na no olho da rua, sim, mas por chegar atrasada logo à primeira sessão. Mas que tonta! Como é que se esquecera de tal coisa? Os nervos, os malditos nervos. Tinha o estômago feito num oito mas, e até tinha vergonha de admitir, o facto de ele ser cego tirava-lhe um peso enorme de cima dos ombros. Não tinha que se preocupar com o seu aspecto. Não tinha que parecer mais bonita do que era. Não tinha que enfrentar os olhos inquisidores e avaliadores de um desconhecido, ainda por cima homem e bem parecido, pelo que pudera aperceber-se por baixo dos óculos escuros e apesar da penumbra do quarto. E também por causa do nervosismo. Os únicos olhos com que tinha de se preocupar eram os da Nº 5, mas parecia-lhe que ela ali não tinha muito a dizer, afinal de contas.
Durante a viagem tentou fazer alguns exercícios de respiração que se lembrava de ter lido numa revista, mas aquilo só contribuiu para lhe deixar o coração aos saltos e desistiu. De mais a mais, se ele a tinha contratado, por alguma razão fora e de certeza que não tinha sido por causa dos seus lindos olhos.
Faltavam cinco minutos para as seis quando saiu do metro. Teve que percorrer a distância que a separava da casa a passo de corrida. Quando chegou à porta tinha a respiração acelerada e o coração aos pulos e teve que se encostar ao parapeito, enquanto fazia soar o batente.
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Sonhou naquela noite. Foi um sonho estranho. Sonhou com uma voz que o perseguia por toda a casa e que ressoava nos cantos, como uma enorme onda que rebentava por cima da sua cabeça. Mas o sonho não tinha imagens, o que o deixou aterrado. Depois do acidente, era a primeira vez que sonhava sem imagens. De facto, não se lembrava nunca de ter tido um sonho que não tivesse imagens. Ele sabia que estava em casa, mas não via nada. Era uma sensação estranha. Tão estranha e aterrorizadora que acordou alagado em suor e teve que afastar violentamente os lençóis do corpo. Esperou que a escuridão começasse a desaparecer e que as silhuetas do quarto fossem ficando cada vez mais perceptíveis. Mas a escuridão deixou-se ficar, teimosa e silenciosa, como um manto negro de veludo pesado e sem contornos, infinito.
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" 'Eles flutuam,' cantarolou a coisa na sarjeta, numa voz espessa e cacarejante. Segurou o braço de George no seu aperto grosso e verminoso, puxou George para aquela terrível escuridão onde a água corria e rugia, enquanto carregava a sua carga de destroços da tempestade em direcção ao mar. George estendeu o pescoço para longe daquela escuridão final e começou a gritar para a chuva, a gritar irracionalmente para o céu branco outonal que curvava sobre Derry naquele dia no Outono de 1957. Os seus gritos eram penetrantes e lancinantes, e de cima a baixo da rua Witcham vieram pessoas …" (16)
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Fechou o punho e atingiu o colchão vezes e vezes sem conta, tantas vezes que acabou por ficar com o pulso dorido, quase sem dar por isso. Só reparou que estava a gritar ao mesmo tempo, quando outra voz se elevou acima da sua.
"John! John! Pára com isso!"
Clara nunca se aproximava. A única vez que lhe tocara durante a idade adulta fora quando lhe pregara o tal par de estalos, numa noite semelhante àquela.
Parou, arfante, gotas de suor escorrendo-lhe pela cara abaixo. Depois começou a praguejar num murmúrio, batendo com o punho suavemente no colchão.
"Sai do meu quarto! Não vês que não tenho pijama?"
Não queria chorar à frente dela.
"Não acendi a luz. Não vejo nada."
"A sério?", começou a rir-se, "Não me digas! Qual é a sensação? Bem-vinda ao Clube dos Ceguinhos. Ainda não viste nada!", e continuou a rir-se histericamente, "Também não há muito para ver, deixa lá. O John Jr. anda um bocado em baixo, sabes."
Ouviu a porta fechar-se, suavemente, o que o pôs de novo fora de si. Não queria pena. Pena era a última coisa que queria. Ou indiferença.
"Não te atrevas a ter pena!!", berrou.
Ouviu nova porta fechar-se, a porta do quarto de Clara.
"Que ninguém se atreva a ter pena.", a frase descaiu até um murmúrio abafado pelo esforço físico.
Tentou fixar um ponto na escuridão. Mas a única coisa que lhe apareceu à frente foi o suposto rosto da rapariga.
"Emily … Não te atrevas tu também a teres pena de mim, senão ponho-te um par de patins já amanhã."
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"Ele era um velho que pescava sozinho num barco na corrente do Golfo e já tinham passado oitenta e quatro dias sem ter pescado um único peixe. Nos primeiros quarenta dias tinha tido a companhia de um rapaz. Mas após quarenta dias sem apanhar peixe os pais do rapaz disseram-lhe que o velho era final e definitivamente “salao”, que é a pior forma de infelicidade, e o rapaz fora por ordem dos pais embarcar noutro barco onde apanhou três bons peixes na primeira semana. O rapaz ficava triste cada dia que via o velho vir no seu barco vazio e ia sempre ajudá-lo a transportar o rolo da linha ou o gancho e arpão e a vela que estava enrolada no mastro." (17)
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Era má ideia. O melhor era desistir. Que raio de ideia era aquela? Onde raio é que pensava que se estava a meter? O que é que lhe tinha passado pela cabeça? Amanhã teria que lhe dizer que desistira.
"Peço desculpa pelo incómodo."
Peço desculpa pelo incómodo? Que estupidez. Enviaria Clara como embaixadora. Era um presente oferecido de bandeja. Clara, a demolidora-mor, ia adorar a oportunidade de poder pôr a pobre rapariga no olho da rua, mesmo antes de ter começado. Clara ia adorar ter razão, apesar de não ter partilhado consigo mais do que aquele desabafo em forma de pergunta.
"Mas que ideia é essa?"
Mas que raio de ideia é essa, fora o que ela quisera dizer, claro. Mas, ao contrário do seu nome, Clara não era uma pessoa que dizia exactamente o que pensava.
Não podia desistir. O pesadelo pusera-o naquele estado. Estupidamente vulnerável. Logo se veria. Ao menos tinha que dar uma hipótese à rapariga. Deixá-la vir amanhã e ler um pouco. Sorriu na escuridão. Sabia muito bem o que é que lhe ia dar a ler. Soltou uma gargalhada abafada, como um miúdo que ri à sucapa, para não ser ouvido enquanto pensa na partida que vai pregar. E que bela partida ele lhe tinha reservado. Claro que não podia desistir, quanto mais não fosse pelo prazer de poder pregar aquela pequena partida.

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(16) It - Stephen King; (17) O Velho e o Mar - Ernest Hemingway

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