segunda-feira, 19 de novembro de 2007

MURMÚRIOS DE LISBOA XLIX

Estepes Nos Teus Olhos - Parte IV
Roleta Russa

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Parque das Nações - Interior da Escultura sonora "Horas de Chumbo"
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Julgo que Vladimir é um homem doente. Talvez seja por isso que caminha tão devagar e os seus movimentos sejam tão rígidos. A semelhança com Harvey Keitel ainda está lá, mas cada vez mais vaga. Há pouco tempo sentou-se ao meu lado e não moveu um único músculo durante toda a viagem, fazendo-me parecer uma autêntica hiperactiva por comparação, eu que também pouco me mexo. E a sua imobilização só me fazia ter vontade de me mexer ainda mais. Mas penso que hoje algumas peças encaixaram finalmente no puzzle. O que explicará também o seu português perfeito e o seu conhecimento da geografia lisboeta - alguém lhe perguntou uma informação enquanto esperávamos na paragem e Vladimir respondeu prontamente, sem hesitações, como um autêntico nativo.
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Naquela manhã, Vladimir sentara-se à minha frente, e de frente para um manganão que trazia a música do telemóvel bem alto, para que todos pudéssemos partilhar a alegria de uma kizomba à martelada. Spunk. Spunk. Spunk. Vladimir entreabriu as suas estepes, cemicerrou-as e tentou fulminá-lo, mas sem êxito. O silêncio durou apenas os momentos de mudança de banda sonora e o manganão retornou à carga. Vladimir cerrou as suas estepes e foi nessa altura que dei por mim preocupada. Aquela reacção tão insonsa era estranha.

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Foi então que reparei nos dois personagens sentados atrás do príncipe das estepes, como duas sentinelas discretas mas óbvias, e nessa altura tudo encaixou.
O do lado esquerdo andaria pelos 60 e muitos anos, vestia um blaser com padrão axadrezado cor de tijolo e uma camisa azul clara, do mesmo tom que os olhos pequenos. Chamar-lhe-emos Smith, porque o seu rosto aristocrático e britânico não deixa margem para dúvidas - Smith está ao serviço de Sua Majestade. Um tufo branco de cabelos decora-lhe o crâneo, de testa muito alta e muito redonda. Os ombros estão levemente inclinados para a frente, como se estivesse permanentemente quase a levantar-se. Ostenta um ar firme, mas gasto pelas dezenas de missões realizadas ao serviço do MI6. Ainda pertence à velha guarda, ao tempo da Guerra Fria, e podia passear-se com o maior à vontade por entre as páginas de um qualquer romance de John Le Carré. O blaser e a camisa já fazem parte da sua pele e guardam o odor de muita pólvora disparada à queima-roupa.
O personagem do lado direito, sentado junto da janela, é árabe. Talvez sírio ou turco. Claro que isto pouco importa, porque reporta à Mossad, nem mais. Perguntar-me-ão, como é possível um árabe trabalhar para a Mossad. E eu respondo-vos que coisas bem mais estranhas já aconteceram neste mundo. E que a polícia secreta israelita recruta os melhores dos melhores, pouco se importando com a sua proveniência. Meia estatura, atarracado, forte e muito moreno, é mais novo que Smith e Vladimir, andará pelos 40 e poucos anos e ostenta um bigode concentrado e bem aparado. Veste um blaser castanho escuro e uma camisa aos quadrados pretos e brancos. Olha pela janela, mas a sua atenção não está lá fora. Chamar-lhe-emos Hassan.

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Portanto, e bem vistas as coisas, o que se passa é o seguinte: Vladimir está a morrer envenenado, mas antes que essa fatalidade aconteça, deverá passar todas as informações que possui para as mãos dos seus colegas, antes que seja demasiado tarde. O local da troca foi o autocarro e tudo correu como se esperava, sem surpresas. Hassan levantou-se, pediu licença a Smith como se não o conhecesse de lado nenhum e passou por Vladimir, sentado à sua frente, para se dirigir à porta de saída, raspando-lhe ao de leve o braço esquerdo cuja mão se encontrava enfiada dentro do bolso do casaco de ganga. Smith permaneceu no seu posto para se certificar que a troca decorria sem percalços e lá continuou depois de sairmos. Não sei nem quero saber o conteúdo dessa troca, até porque se soubesse, um deles teria de me matar. E quem ficaria para contar a história? Mas presumo que seja um microfilme de qualquer espécie com informações cruciais sobre mísseis algures no Médio-Oriente.
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Apetece-me seguir Vladimir. Mas como seguir um espião-duplo russo do KGB sem que ele nos "cheire" e nos corte a goela num movimento rápido, implacável e tecnicamente perfeito? Claro que eu sei que Vladimir gosta de mim. Digamos que ele acha piada àquela miúda (para Vladimir, que tem pelo menos mais uns 10 anos que eu, eu ainda sou uma miúda) que o observa subrepticiamente sempre que partilhamos a mesma carreira. Afinal, até um espião-duplo russo tem sentimentos. Mas se tiver que ser, também sei que ele não hesitará. E seguirá um velho lema do antigo KGB: "Qualquer um pode cometer um assassínio, mas é preciso um artista para cometer um suicídio."

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