segunda-feira, 5 de novembro de 2007

MURMÚRIOS DE LISBOA XLVIII

O Olhar do Sith

Parque Expo - Pavilhão de Portugal

Voltei a vê-lo, antes de ir de férias. O Jedi caído. O Sith. Costumo vê-lo na rua, arrastando os seus sacos cheios de velhos recortes de jornais onde a sua história foi mencionada e analisada até à exaustão, uns quantos sabres de luz ferrugentos e sem força e uma quantidade variável de artefactos das mais variadas proveniências da Galáxia, que ele troca constantemente com outros como ele.

Sentou-se lá atrás, à minha frente. Mexe-se muito devagar e sempre com o extremo cuidado de não incomodar ninguém, como se fosse a sombra de si próprio. Provavelmente já nem sequer tem sombra. Não reparei. Da próxima vez hei-de reparar.
As suas mãos negras de sujidade e vergonha tocam cuidadosamente as coisas, como se não quisesse sequer que até as coisas dessem pela sua presença. Desta vez, em lugar do sobretudo preto infestado de pulgas, trazia uma camisa de manga curta que já fora beje e era agora de um tom acastanhado, com manchas de sujidade impregnadas.
Ficou a observar duas miúdas muito novas que, nos lugares à sua frente, se enrolavam uma na outra, naquela intimidade promíscua das raparigas muito novas. Uma delas tinha a cabeça no colo da outra, que com uma atenção cirúrgica lhe espremia uma borbulha ou ponto negro alojado no pescoço.
O Sith observava-as atentamente, mas não consigo sequer imaginar o que lhe passaria pela cabeça. Os seus olhos negros e opacos são instransponíveis. A luz não é benvinda naquelas órbitas, como nos buracos negros que tudo sugam das imediações. O sofrimento ou a loucura ergueram uma barreira que parece de rocha indestrutível. Parece …
É preciso muito cuidado ... muito mesmo ... um cuidado igual à ciência envolvida no processo de espremer uma borbulha no pescoço de uma amiga. Não é permitida a passagem a estranhos. Não se pode transpor essa barreira impunemente. Não porque seja impossível, mas porque podemos ser surpreendidos de formas que não esperávamos. E podemos não saber lidar com o que se nos é revelado repentinamente.
Por isso tenho muito cuidado e muito respeito quando observo este Sith. Pode ter caído há muito tempo e já nem sequer se lembrar que o foi, mas um ex Jedi ferido e abandonado, pode ser ainda mais mortífero do que um Sith na plena posse de todas as suas impressionantes capacidades.

E então aconteceu algo profundamente perturbador - enquanto lhe observava a nuca fixamente, ele pressentiu o meu olhar, girou lentamente o pescoço na direcção da janela, os seus olhos desviaram-se para trás e eu tive a certeza absoluta que ele sentira o meu olhar, habituado que está a que o desviem sempre que passa.
As raparigas e a sua promiscuidade inocente e as suas risadas pareceram incomodá-lo. Levantou-se em câmara lenta e lutou com o chão até lá à frente, onde permaneceu uns momentos no seu lugar preferido, junto à primeira porta de saída. Mas não parecia achar-se ainda confortável e então tomou uma decisão inesperada - pediu licença a uma senhora e sentou-se junto dela, do lado da janela e aí ficou, encolhido, sem estabelecer propriamente contacto com nada, como se estivesse em conluiu secreto com os objectos que lhe tocavam - "não estou aqui, não me sintam, não sou, não estou, não existo …”
E depois olhou para trás, para mim. Espreitou-me por entre duas cabeças. Os seus olhos opacos e condenados. Os meus tinham-se enchido de lágrimas, por trás dos óculos escuros. Olhou-me de novo.
O Sith não fugira das raparigas, mas de mim. Espreitava-me com os seus olhos densos. Desviei o olhar, nessa altura. Não por medo. Quis deixá-lo em paz com o meu olhar vampiro. Existem coisas de que só um Sith caído se pode aperceber. Como os meus olhares vampirescos sobre os outros. Olhares que o perseguem, pela calada.
Porque este Sith pode ter-se esquecido que já foi em tempos um Jedi luminoso e brilhante, mas há lições que permanecem para sempre. Como esta: um Jedi olhos nas costas ter deve. Sempre. De muitos lados vir o inimigo pode. E nem sempre de onde esperamos é.
Naquele dia, e talvez para sempre, eu fui um dos muitos fantasmas que assombram a mente de um pobre Sith cansado, assustado e perdido algures nesta Galáxia de almas sem misericórdia. Naquele dia, este Sith existiu para alguém, mas ele já não está habituado a suportar o peso da sua existência.

May the force be with you ...

1 comentário:

Dry-Martini disse...

É por vezes tão pequena a distância entre um Jedi e um Sith... Lembre-se sempre disso nos seus olhares "vampirescos".