sexta-feira, 16 de novembro de 2007

EM MINHA CASA, NA PONTA DOS PÉS 7 (cont.)

Capítulo 3. O MUNDO ERA TÃO RECENTE QUE MUITAS COISAS AINDA NÃO TINHAM NOME
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"'Eu sou um computador HAL Nove Mil Número de Produção 3. Tornei-me operacional na Fábrica Hal, em Urbana, Illinois, em 12 de Janeiro de 1997. A veloz raposa castanha ataca o cão preguiçoso. A chuva em Espanha é sobretudo na planície, Dave … ainda estás aí? Sabias que a raiz quadrada de 10 é 3 vírgula 162277660168379? O logaritmo de 10 na base e é zero vírgula 434294481903252 … correcção, isso é o logaritmo de e na base 10 … O inverso de 3 é zero vírgula 333333333333333333333 … dois vezes dois é … dois vezes dois é … aproximadamente 4 vírgula 101010101010101010 … Parece-me que estou em dificuldades … O meu primeiro instrutor foi o Dr. Chandra. Ele ensinou-me a cantar uma canção, que é assim: 'Daisy, Daisy, dá-me a tua resposta, sim. Estou meio maluco com o amor que há em mim.' " (11)
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Sempre gostara de ler. Desde pequena que devorava livros, como outros devoram pacotes de amendoins ou batatas fritas. Gostava tanto de ler, que lia em voz alta porque o som da sua voz lhe ampliava o poder e o conteúdo das palavras enroladas na saliva como manjares deliciosos, deglutidos e depois libertados em estalares e crepitares e ronronares e sibilares desconcertantes. Ao longo dos anos fora aperfeiçoando este jeito, quase sem dar por isso, primeiro porque começara por imitar os pivots dos telejornais, depois porque na adolescência se transformara numa apaixonada de teatro e passara a frequentar as salas onde os actores projectavam as suas vozes para além da última fila, em cadências emotivas limadas pela técnica.
Infelizmente, os seus limites culturais nunca lhe haviam permitido saborear verdadeiramente o que lia ou ouvia. A forma parecia interessá-la muito mais que o conteúdo e continuara a interessá-la muito mais, mesmo quando já amadurecera e aprendera o suficiente para compreender e reflectir sobre o que lia. Por um qualquer motivo inexplicável, Emily nascera com um estranho dom, que ela própria desconhecia. O dom de cativar através do som da sua voz. Mas a única pessoa que cativara até então fora ela própria. Guardava este segredo para si, na privacidade de quatro paredes, longe de ouvidos estranhos. Por vezes, sonhava com uma audiência que lhe bebesse as palavras recitadas, mas era apenas um sonho.
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"Amigos, romanos, conterrâneos, emprestem-me os vossos ouvidos;
Venho para enterrar César, não para o louvar.
O mal que os homens fazem vive depois deles;
O bem é frequentemente enterrado com os seus ossos;
Assim seja com César. O nobre Brutus
Disse-vos que César era ambicioso.
Se assim fosse, seria uma séria falta;
E seriamente respondeu César por isso.
Aqui, com permissão de Brutus e do resto-
Porque Brutus é um homem honrado; …" (12)

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Desde pequena que os seus horizontes se haviam alargado muito para além da pequenez da vila onde habitavam os seus limites existenciais. Desde pequena que sabia que não ficaria ali fechada, a não ser o tempo necessário para crescer e se escapulir do casulo de larva para voar o seu vôo de borboleta.
Mas para onde desejava a crisálida voar? Não parecia ter certezas sobre nada.
Quando vira o anúncio, decidira-se a concorrer apenas por descargo de consciência, mas com a secreta ambição de que a sua voz treinada subtilmente ao longo dos anos, fosse capaz de sobressair. Mesmo assim, fora apanhada de surpresa. Sobretudo porque aquele mundo daquela casa era um mundo tão distante do seu e aquele homem sentado naquela batedeira eléctrica era um homem tão diferente de todos quantos conhecera até então.
Olhou para o quarto que alugara há uns meses, um minúsculo quarto decadente que o parco salário da biblioteca da faculdade lhe permitia alugar. O quarto que o namorado olhara com horror e nojo quando finalmente a viera visitar, ao perceber que aquilo não era um desaire momentâneo de adolescência tardia.
"Eu vou ficar. Gosto de estar cá."
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“Nova Iorque era um espaço inesgotável, um labirinto de passos intermináveis; mas independentemente da distância que percorresse, independentemente de se ter familiarizado com as vizinhanças e ruas, ficava sempre com a sensação de estar perdido. Perdido, não apenas na cidade, mas também dentro de si. Sempre que dava um passeio, sentia-se como se se deixasse a si próprio para trás, e entregando-se ao movimento das ruas, reduzido a um olho que se vê, conseguia escapar à obrigação de pensar, e isto, mais do que qualquer outra coisa, trazia-lhe uma certa paz, um salutar vazio interior. O mundo estava no exterior de si, à sua volta, perante si, e a velocidade com que o mundo mudava impossibilitava-o de se prender por muito tempo a uma única coisa. O movimento era a essência, o acto de pôr um pé diante do outro e seguir a errância do seu próprio corpo. Todos os lugares se tornavam semelhantes caminhando assim sem destino, e deixava de ter importância o sítio onde se encontrava. Nos seus melhores passeios, conseguia atingir o sentimento de que não estava em sítio algum. E isto, afinal, era tudo o que pedia às coisas: não estar em sítio algum. Nova Iorque era esse nenhures que havia construído à volta de si mesmo, e apercebeu-se de que não tencionava abandonar aquela cidade, nunca.” (13)
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(11) 2001 Odisseia no Espaço - Arthur C. Clarke; (12) Júlio César - William Shakespeare; (13) A Trilogia de Nova Iorque – Cidade de Vidro – Paul Auster

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