terça-feira, 20 de novembro de 2007

EM MINHA CASA, NA PONTA DOS PÉS 8 (cont.)

Capítulo 3. O MUNDO ERA TÃO RECENTE QUE MUITAS COISAS AINDA NÃO TINHAM NOME
çlfdºçfl

"Mas como é que podes gostar disto? Esta cidade é tão impessoal, tão vazia. As pessoas não se conhecem. Sabe-se lá que pessoas é que andam por aqui. Vê lá com quem te metes. Ainda no outro dia no jornal vinha uma notícia sobre um desses assassinos não sei das quantas."
O namorado não percebia. E ela não se importava, porque tanto lhe fazia que ele percebesse ou não.
"Assassinos em série."
"Quando é que voltas?"
Ficava a olhá-lo e a tentar perceber se ele realmente ainda acreditava que ela ia voltar, ou se valia a pena dizer-lhe o que pensava.
"Não sei. Agora estou aqui."
Normalmente abanava a cabeça ou desligava-lhe o telefone na cara e depois voltava a telefonar horas mais tarde.
"Emily … Não te percebo … Sinto a tua falta. Esse lugar não é o teu."
Como explicar-lhe que, apesar de tudo, era feliz assim? Que preferia viver assim a regressar a casa? Como explicar-lhe que já se habituara de tal forma ao barulho do trânsito à noite, que não seria capaz de adormecer em casa sem se sentir terrivelmente sozinha no meio daquele silêncio profundo do campo?
"Como está o meu pai?"
"Bem. Fui visitá-lo ontem. Perguntou por ti."
Mas não te falará nunca mais, porque da última vez que haviam trocado palavras fora apenas para lhe comunicar que o ia deixar sozinho, entregue à memória da mãe.
Sabia que nunca mais poderia voltar porque aquele mundo já não lhe pertencia. Mas também sabia que por enquanto, este mundo também ainda não era seu. Orbitava entre dois mundos, num vazio límbico que a assustava mas que a mantinha mais viva do que nunca.
Por enquanto, o único mundo que já poderia chamar seu era o do pequeno gabinete onde todos os dias inseria fichas no computador da biblioteca da faculdade e onde, de vez em quando, trocava impressões com alguns dos professores e alunos que por ali gravitavam e a quem procurava desesperadamente mostrar que não era só mais uma provinciana sem nada na cabeça.
Cedo descobriu que, apesar de toda a cultura que bebiam horas a fio e talvez por causa disso, os mesmos professores e alunos davam mais atenção à curvilínea e oca Amanda com a sua voz esganiçada e a sua propensão para atropelos linguísticos abomináveis.
O que Emily certamente não entendia era que Amanda, apesar de toda a futilidade, era autêntica, enquanto que ela não passava de um potencial de qualquer coisa que ninguém conseguia perceber e que os deixava instintivamente desconfiados, sem sequer darem por isso.
Agora, porém, o seu interlocutor mostrara verdadeiro apreço pela sua voz e, mais importante ainda, estaria realmente interessado no que a sua voz diria porque a escolha era dele.
A partir de hoje, pensou, enquanto inseria a quinquagésima sexta ficha do dia na base de dados, estava nas suas mãos, ou por outra, nas suas cordas vocais, manter esse interesse.
ddçkdkld
"Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía haveria de recordar aquela tarde remota em que o pai o levou a conhecer o gelo. Macondo era então uma aldeia de vinte casas de barro e cana, construídas na margem de um rio de águas transparentes que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos. O mundo era tão recente que muitas coisas ainda não tinham nome …" (14)
dkkldçld
Às quatro da tarde Emily começou a olhar para o relógio com sinais de ansiedade. Estava a ficar nervosa. Nada de anormal. Ela era uma pessoa nervosa. Às quatro e meia já havia percorrido a escala completa até ao nível do pânico. Às quatro e quarenta e cinco o pico descera vertiginosamente para uma apatia que a fazia querer subitamente desistir de tudo. Telefonaria a dizer que afinal não queria aceitar o trabalho. Nem precisava de telefonar. Simplesmente não apareceria. Cinco horas. A campainha tocou. Começou a arrumar as suas coisas e demorou mais tempo do que o costume. Quando chegou à rua já passava um quarto das cinco. Tinha que se decidir. Caramba …. Onde é que se fora meter? E agora? Mas porque é que se fora meter numa situação daquelas?
kjfgklfjg
"Normalmente, dava bons conselhos a si própria (embora muito raramente os seguisse), e às vezes ralhava consigo tão asperamente que as lágrimas lhe marejavam os olhos; e uma vez pensou puxar as próprias orelhas por se ter enganado a si própria numa partida de cróquete que estivera a jogar consigo mesma, pois esta criança tão especial gostava muito de fingir que era duas pessoas." (15)
lfºdçlfd
Arrastou o passo na direcção do metro. Ainda tinha tempo para desistir. Quando chegasse à entrada da estação tinha que decidir duma vez por todas. Olhou-se subrepticiamente no reflexo do vidro de uma montra. Estava uma lástima. O que é que ele ia pensar do seu vestido e dos seus sapatos usados? E nem valia a pena mencionar o casaco … Provavelmente o melhor era mesmo desistir. Mas onde é que estava com a cabeça? Como é que ela alguma vez podia ter lugar numa casa daquelas, com gente daquelas? Soltou uma gargalhada abafada e triste. Se a visse naquele estado, de certeza que era ele quem a poria pessoalmente no olho da rua.
Chegara ao princípio das escadas que davam acesso à estação do metro. Um idoso cego pedia esmola sentado no primeiro degrau. Emily puxou da carteira e tirou uma moeda. E então, subitamente, teve um princípio de ataque de riso que só não se concretizou porque o velho "olhava" para ela como se a conseguisse trespassar com o olhar. Como ele o fizera na tarde anterior. Porque também era cego e onde é que ela estava com a cabeça?

ldkçldk

(14) Cem Anos de Solidão - Gabriel García Márquez; (15) As Aventuras de Alice no País das Maravilhas - Lewis Carroll

Sem comentários: