domingo, 1 de junho de 2008

MURMÚRIOS DE LISBOA LXII

Shadows And Dust
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Naquela manhã de Segunda-feira éramos 3 com algo em comum naquele autocarro. Todos trazíamos um anjo invisível sentado ao nosso lado.
O meu é antigo, o dela é recente, a dele é recorrente.
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Já me habituei ao meu. Aparece duas ou três vezes por ano. Nunca sei quando. Habituei-me a pensar que é quando ele pensa em mim. Quero acreditar que sim. Prefiro o conforto dessa suposição, à frieza da explicação psicanalítica. O meu anjo detesta psicólogos. Eu também não vou muito à bola com eles. Fazem-me lembrar sempre-em-pés sem emoções. O meu anjo agia de acordo com o que sentia, apesar de ter os pés bem acentes na terra. Foi por isso que me arrebatou. Viu-me, quis-me e veio buscar o que era dele. Também tinha umas mãos de seda e uns braços fortes e isso ajudou muito. E cheirava a vinho doce. E chamava-me miúda. E uma quantidade infindável de outras pequenas e grandes particularidades que me fizeram querer ser dele. E falávamos imenso. Sobre tudo. Sobre coisas tão estapafúrdias e tão sérias, que ninguém podia entender como nos entendíamos.
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O anjo da morena que vai sentada à minha frente desapareceu há pouco tempo. Ela ainda não tem a certeza se é de vez e por isso o seu semblante carrega uma ruga vincada no meio da testa, na vertical. A ruga nasceu há coisa de um mês e ameaça lá ficar indefinidamente marcada naquela pele branca, quase translúcida. A madeixa de cabelo castanho que lhe tapa metade da testa, contrabalança o peso da ruga num movimento assimétrico-equilibrado. É um dos efeitos dos encontros com anjos - provocar movimentos assimétricos. Têm queda para eles, uma vez que são voadores exímios.
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Já a anja do homem que está encostado na zona da porta, a meio do autocarro, aparece e desaparece constantemente. É por isso que em vez de rugas vincadas na testa, as suas têmporas estão inundadas de cabelos brancos, apesar de andar pela mesma idade que eu. A sua anja é de humores, de arrebatamentos e de arrependimentos. Por vezes abre as asas maiores que o mundo e desaparece de vista nas rotas dos albatrozes. Outras vezes encolhe-as e abriga-se nos braços dele, com medo do mundo.
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O meu anjo não me deu nem rugas nem cabelos brancos. Deu-me vida e sorrisos e frémitos indescritíveis. E amor. Daquele que só se percebe que é amor, quando a vida nos ensina que não há maneira de ele passar ou acabar, passe o que passar por nós.
O meu anjo e eu fazíamos faíscas quando os nossos dedos se tocavam, sistemas solares quando os nossos corpos se entrelaçavam e alfabetos novos quando os nossos corações se falavam.
Quando me fui embora do meu anjo, foi ele quem ficou sentado a cantar esta canção. Ficou assim, a olhar para mim, com olhos de leão enjaulado, a querer agarrar-me e sabendo que não podia. Fui-me embora do meu anjo, não porque quisesse, mas porque tinha de ser. O meu anjo já era de outra pessoa.
Ficámos no coração um do outro. Aí, onde tudo é possível, aí onde os braços dele me continuam a envolver, aí onde os meus beijos o continuam a confortar, aí onde um amor impossível é possível. Sempre juntos, na assimetria das sombras e da poeira.
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Para ti, Paulo.

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