sábado, 5 de julho de 2008

PALAVRAS ESTÚPIDAS 22

Dr. Sabido e Dr. Monjardino
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“Certas deficiências são, por vezes, modos de a natureza corresponder aos nossos desejos mais secretos.”
Gonçalo M. Tavares, Jerusalém
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Tenho uma deficiência. Sou míope e tenho astigmatismo. Mas o único médico que nunca me meteu medo foi o oftalmologista. Porque será? Odeio ir a qualquer outro médico, seja ele qual for. Mas adoro ir ao oftalmologista. Quando era pequena havia dois médicos que eu consultava regularmente – o Dr. Sabido e o Dr. Monjardino. O primeiro era pediatra, o segundo era oftalmologista. O primeiro era completamente calvo e usava óculos, o gabinete dele estava cheio de cores e bonecada pendurada no tecto, mas se me perguntarem se ainda me lembro do cheiro horrível desse gabinete e da sensação fria da marquesa onde me sentava nua, ainda hoje me arrepio com isso. Odiava o homem, apesar dele ser um dos melhores pediatras de Lisboa e provavelmente do país e de me ter sempre tratado muito bem. Odiava-o com todas as minhas forças, porque me sentava com aquilo que eu achava brutalidade e frieza a mais no raio da marquesa gelada e me examinava sem dó nem piedade durante uma meia hora que era uma tortura autêntica.

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Pelo contrário, na porta ao lado estava o Dr. Monjardino que eu amava platonicamente. O Dr. Monjardino era já muito velho e usava óculos de fundo de garrafa (como quase todos os oftalmologistas). Era grande e fazia-me lembrar o Pai Natal, apesar de não ter barba. Respirava pesadamente para cima do meu pescoço, enquanto encostava a lupa ao meu olho e me mandava ler as letrinhas todas projectadas lá ao fundo na parede, com a sala às escuras. E eu, sentada na cadeira com os pés a dar a dar, adorava aquelas sessões com o Dr. Monjardino.
No dia em que a minha mãe me disse que eu já não precisava de ir mais ao Dr. Sabido, explodi de alegria. No dia em que o Dr. Monjardino morreu, fiquei muito triste. Aqui há uns anos ouvi dizer que o Dr. Sabido também tinha morrido. E fiquei triste. Quando o nosso pediatra morre, morre um bocadinho da nossa infância, mesmo que seja um bocadinho que não temos particular interesse em recordar.
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Adeus, Dr. Monjardino. Obrigada por tratar tão bem dos meus olhos, tão bem que hoje já não preciso sequer de usar óculos constantemente, mas continuo a usá-los porque lhes sinto a falta quando não os tenho.
Adeus, Dr. Sabido. Obrigada por tratar tão bem de mim, tão bem que hoje tenho uma saúde de ferro, comparada com tanta gente que conheço.
E sei muito bem o que diria do meu maço de tabaco diário e da minha média de 5 horas diárias de sono. Dava-me uma palmada no rabo e diria “Tenha juízo!” Vou tentar, Dr. Sabido, prometo que vou tentar.

6 comentários:

Dry-Martini disse...

Adorei a expressão de contentamento "a dar aos pés" fez-me lembrar as caudas dos cães :)

XinXin

PS: Acho de devia deixar de fumar .)

Andrómeda disse...

:)))
O Dr. Sabido também devia achar isso ... :\

Unknown disse...

Olá acho que andamos as 2 no mesmo pediatra, não me lembro do nome da rua que era o consultorio, mas lembro-me de estar na janela do consultorio e namorar os bolos da pastelaria em frente :) será o mesmo Dr. Sabido???

Andrómeda disse...

Não sei :) O meu Dr. Sabido era completamente calvo e usava óculos, tinha uma voz autoritária e o consultório era no Marquês de Pombal :)

Unknown disse...

Sei que na altura que eu lá ia tinha uma telefonista/assistente/secretária Dona Claúdina. Mas isso remonta ao seculo passado entre 1977 e 1991 ano em que fui lá a ultima vez!
Mas a descrição que faz dele confere com as minhas recordações!Era dos únicos sitios em que eu não falava pelos cotovelos tal era o respeito que tinha ao Dr.Sabido.

Andrómeda disse...

Pois, não me lembro do nome da telefonista :) Talvez a minha mãe se lembre ... vou averiguar :) E, sim, o raio do homem metia-me um medo de morte. Até hoje consigo sentir o cheiro do consultório e a frieza do raio da marquesa lol