A Classe Média
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Adoro observar a classe média. São melhores que muitas sitcoms. Adoro observar a sua ânsia em fazerem todos parte do clubinho. Que clubinho, pergunto eu? ... Não interessa, parece-me. Desde que seja aquele a que toda a gente pertence, tá-se. O que importa é não ficar de fora, claro está. Mesmo que depois se maldigam todos hipocritamente nas costas uns dos outros.
A classe média vive da hipocrisia. Alimenta-se dela, com efeito. E nada produz, apenas consome, consome, consome, como um Pac Man devorador, como um peixe no seu aquário, a quem seja disponibilizado alimento sem restrições. A classe média come até rebentar, como o peixe. E, como o peixe, vive no seu condomínio transparente, para que todos saibam o quê, quando e como consome. Porque, acima de tudo, o importante é a exibição da "galinha". Até ao endividamento.
Como lemmings em fila indiana, a classe média marcha afincadamente para um lugar qualquer que ninguém sabe. Nem ela própria sabe! O que importa é marchar. O que importa é estar-se incluído na fila indiana. As mesmas roupinhas, os mesmos carrinhos, o mesmo ginásio, as mesmas marquinhas e as mesmas opçõezinhas de vida. Tudo certinho, tudo nos conformes, comme il faux. O importante aqui é mesmo não haver desvios de rota, mesmo quando não se faz a mínima ideia sobre o destino dessa rota. Se vão todos por ali, então é porque para ali deve haver algo, mesmo que eu não esteja a ver o que é. O que importa é não provocar sobrancelhas levantadas. Isso é que não. Horror dos horrores.
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A classe média enche-se e atropela-se com o que as classes baixa e alta produzem, respectivamente, bens e ideias. E depois toma-as como suas, não se limita a devorá-las, assenhora-se delas e altera-as ligeiramente, vá. Uns leves retoques aqui e ali e a coisa fica mais nos conformes. A classe média apavora-se com extremos. Ama a ordem e a falta de criatividade. É, por isso, a única que segue de facto a moda. A que nasce nas ruas da classe baixa e é recriada pelos estilistas da classe alta. A moda é, por esse motivo, uma das coisas mais ridículas e o chamariz ideal para atrair a classe média, como uma cenoura à frente do burro. A classe média tem o dom de se apaixonar por coisas ridículas, precisamente porque não pensa pela sua própria cabeça, utiliza o que outros já pensaram por ela, sem se preocupar sequer em entender o que apropria. Dá muito trabalho.
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A classe média vive num 1984 do George Orwell, mas nunca deu por isso, provavelmente porque nunca leu George Orwell. A classe média prefere coisas mais leves, como o Código Da Vinci, por exemplo, um dos piores romances da década mas que bateu recordes de vendas ou, claro, a Tia Margarida. A classe média adora dizer mal da Tia Margarida, mas depois lê-a avidamente às escondidas. Porque se revê nela, claro. Ou, aliás, não a si própria mas aos outros, os tais que gosta de maldizer nas costas. Todos os outros é que são os retratados nas coisas que a Tia Margarida escreve.
A classe média é paradoxal e esquizofrénica. Porque ela nunca acha que é a classe média. Sim, ouvir-se-á um digno membro da classe média proferir, é verdade que o meu carro é X, mas ao contrário dos outros que andam com X só para se exibirem, existe uma razão muito válida para que eu use X e não Y. Além do mais, como vê, o meu X não é exactamente X, tem uns upgrades pessoais.
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A classe média é também, por todos estes motivos, a "casta social" onde se poderão encontrar mais depressões por metro quadrado. Precisamente porque não ouve a sua voz interior, recusa-se mesmo a admitir a sua existência. Em vez disso, evita a todo o custo qualquer hipótese de ser por ela surpreendida e esse é um dos principais motivos por que os seus membros raramente são vistos sós consigo próprios. E, como não sabe, porque só lê porcarias, que essa voz interior é essencial para o seu equilíbrio, a classe média curto-circuita facilmente sem perceber bem o motivo. E depois vai ao psiquiatra, porque também é moda, logo, socialmente aceitável. E por mais nada. Aqui há uns anos só os maluquinhos ou o Woody Allen é que frequentavam o psiquiatra. Depois a classe média começou a ler nos jornais e nas revistas da classe média notícias parecidas com esta: "A OMS estima que cerca do ano 2020 os suicídios sejam uma das principais causas de morte no mundo, a par com as doenças cardíacas." E a classe média concluiu, bem, estamos no ano 2008, portanto é melhor começar a mexer-me se quero fazer parte da estatística que está na moda.
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Por isso, apressa-te, se queres apanhar a fila, eis alguns conselhos: tem mais olhos que barriga e endivida-te até às orelhas, exibe-te à grande e à francesa sempre dentro da moda e depois crasha com estrondo e dirige-te ao primeiro psiquiatra da lista. Pode ser que até 2020 já estejas morto e enterrado e não provoques olhares de indignação.
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