terça-feira, 22 de abril de 2008

EM MINHA CASA, NA PONTA DOS PÉS 42 (cont.)

Capítulo 11. PODEREI COMPARAR-TE A UM DIA DE VERÃO?
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Fechou-os lentamente. Depois ouviu:
“Agora faça de conta que quer levantar-se para se ir embora e não pode porque as suas pernas não mexem.”
E então Emily deixou-se cair pela cadeira abaixo.
“Estou no chão.”, murmurou.
“Vá até à porta, como puder.”
Ela arrastou-se lentamente, carregando o peso todo do corpo com o tronco e os braços, mantendo as pernas completamente inertes atrás de si. A distância percorrida pareceu-lhe subitamente muito mais longa do que calculara. Tacteava à sua frente, ao mesmo tempo que puxava o resto do corpo, sentindo a carpete japonesa por baixo dos dedos. Sentia Wolf saltitar à sua volta e ganir.
John chamou o cão, batendo com a mão na cadeira:
“Wolf!”
O setter correu para ele e deixou-se ficar sentado junto da roda esquerda da cadeira, observando Emily, confuso.
Emily continuou a sua travessia da carpete, sem sequer se lembrar que alguém poderia entrar naquele momento, a criada com o chá ou Clara com o seu azedume, e surpreendê-la naquela inexplicável posição. Mas como tudo o resto que se passava dentro daquela sala, pareceu-lhe que o que estava a fazer era perfeitamente lógico e pareceu-lhe que não queria saber se mais ninguém compreendesse.
Chegou finalmente ao fundo da sala e puxou o resto do corpo até junto da parede, calculando mal a distância e lançando os ombros de encontro à pedra com mais força do que pretendera. Permaneceu assim, encostada de costas contra a parede, de olhos cerrados, respirando pesadamente, o corpo torcido.
Wolf abandonou finalmente a roda do dono e correu para junto dela, lambendo-lhe as mãos e arfando.
“Percebeu?”, murmurou John do fundo da sala.
Emily suspirou e engoliu em seco. Naquele momento, apeteceu-lhe não ter que abrir os olhos mas sabia que era apenas naquele momento. Abanou a cabeça e depois lembrou-se que ele, ao contrário dela, não podia abrir os olhos quando lhe apetecesse. Disse:
“Sim.”
Levantou-se e regressou à cadeira, relutantemente. Queria rodear a mesa e tocar-lhe na mão mas tinha a certeza que isso não seria a atitude mais correcta e que apenas serviria para os afastar, ironicamente. Em vez disso, incitou Wolf na direcção do dono, como se na impossibilidade de o poder fazer ela própria, pretendesse que o animal transportasse o seu toque e o depositasse na sua pele.
John curvou-se na cadeira e recebeu o cão com ambas as mãos abertas, erguendo-o nos braços para o depositar no seu colo e permaneceu o tempo restante da sessão de leitura a acariciar-lhe o dorso suavemente.
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Em certa medida, Clara tinha razão, quando a comparava ao cão, mas não pelos motivos que apontara. Era verdade que Emily não passava de uma simplória, um tanto ou quanto ingénua, que não sabia muito bem o que queria da vida nem para onde se dirigia.
Mas ele tinha a certeza que era apenas uma questão de tempo e de experiência, até que ela conseguisse desabrochar e todas as suas extraordinárias capacidades latentes explodiriam muitos anos mais tarde, numa altura em que ele já não estaria presente.
Tal como Wolf, ela tivera a capacidade, subtil e inadvertidamente, de o suavizar ao longo do tempo, apenas dentro daquela sala, onde os dois partilhavam um mundo secreto, tecido nas entrelinhas das palavras que alguns génios da análise da condição humana haviam escrito há muito tempo atrás. E sentia que com o passar do tempo, ela conseguiria suavizar-lhe o carácter muito mais, até perder provavelmente a clareza e frieza de ideias que o impediam de amolecer, até se transformar numa sombra de si próprio, numa ridícula farsa sobrevivente, fingindo sentir prazer numa patética pseudo-vida de aleijado. Não queria que chegasse a esse ponto. Não queria, pura e simplesmente porque o que estavam a tecer entre os dois não passava de uma ilusão.
Se não estivesse naquele estado, Emily teria permanecido invisível aos seus olhos, mesmo que a tivessem pespegado à sua frente todos os dias. E mesmo que por um qualquer desígnio da vida, ele tivesse conseguido perceber que por baixo daquela simplicidade enervante ela escondia uma sabedoria insuspeita até para si própria. Descobrira isso quando a criatura o surpreendera com a sua análise ao intragável Joyce.
E como estava naquele estado, ser-lhe-ia impossível permitir-se sequer deixar que a sua mente começasse a fantasiar.
Restava-lhe apenas deixar-lhe algo, não como agradecimento, mas porque ela seria a única pessoa capaz de dar sentido a tudo o que amara na vida.

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