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Viajando por baixo da Ponte 25 de Abril
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"Everybody’s got wings. You just have to find them and open them."
David Gahan - Depeche Mode
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Há muito tempo que não via nenhum anjo famoso no autocarro. Escusado será descrevê-lo. Era a cara chapada do David Gahan, o vocalista dos Depeche Mode (vão ver ao google). A única diferença é que era mais baixo.
Entrou no aeroporto, claro. E saiu na minha paragem, claro. Está, portanto, em trânsito, via Lisboa.
Sei para onde.
Para um reino onde só é permitida a entrada a anjos cinzentos, de asas bem grandes e bem abertas. Para um reino onde só têm acesso anjos de vozes poderosas, que rasgam a alma e abrem feridas desconcertantes. Um reino que apenas admite a entrada de anjos corajosos, que não têm medo de dizer o que pensam nem de sofrer as consequências.
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Neste reino há espectáculos todas as noites. David é sempre uma das estrelas. Tem sempre uma plateia repleta de anjos de asas abertas ou fechadas, consoante o estado de espírito do seu portador. Não se vê nem preto, nem branco, nem outras cores. Apenas cinzento. Múltiplos matizes de cinzento, matizes nunca antes avistados do lado de cá.
Cada matiz representa a alma de cada anjo. E há-os de todas as espécies imagináveis. Tantos tons de cinzento, que há quem jure conseguir ouvir mesmo sons ou sentir sensações quando olha as asas destes anjos. No fim, ninguém aplaude. Abanam-se asas, com maior ou menor convicção, consoante o grau de prazer disfrutado pela actuação no palco.
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Sempre que David canta, se fecharmos os olhos, podemos ouvir um frissom de penas, milhares de penas, a friccionarem-se umas nas outras, suave, mas persistentemente. Se abrirmos os olhos, poderemos ver que eles, os anjos da assistência, têm os seus fechados e que um sorriso, ou doce, ou angustiado, lhes emoldura o semblante.
É que sempre que David canta, ele fala com as almas cinzentas do seu público de anjos. É uma linguagem secreta, que traz memórias ternas ou negras. Lá estão Janis e Elvis e Maria, de olhos cerrados e sorriso tenso. Lá estão Jim e Michael e John de sorriso doce. Há quem diga que também já viu por lá Luciano e até mesmo Frank.
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Estes anjos nunca viram Deus, nem Deus os viu a eles. Deus também não sabe chegar a este local. É preciso errar muito para lá chegar e ter o privilégio de entrar.
O caminho? Sei apenas que para lá chegar, a este reino de anjos cinzentos, é preciso apanhar um comboio. Qualquer um. A viagem deve ser lenta, sossegada, compassada, embalada e, sobretudo, demorada. Com muitos erros.
1 comentário:
Por uma série de pormenores mas sobretudo pelo dom de errar acho que tenho lugar nesse comboio .)
XinXin
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