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Procurei-o algures entre o fim da adolescência e o princípio da idade adulta, naquela fase da vida em que eu também julgara saber todas as respostas de todos os mistérios já repensadas por tantos antes de mim. Nessa idade somos insuportáveis, claro, e balançamos constantemente entre a certeza de sermos o centro do mundo, esse maravilhoso umbigo em redor do qual todos os outros universos giram ininterruptamente, cantando odes como os serafins ao deus omnipotente, e o horror de constituirmos uma absoluta e irremediável incompreensão para os ignorantes (que são todos) que nos rodeiam.
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O Umbigo estava deitado no seu leito de cetim, rodeado de plumas e veludos, refastelado e lambuzando-se com bombons coloridos e cheirosos. O cenário era o de um Baco Caravaggiano, luxuriante e decadente, narcísico e tresandando insuportavelmente a odores corporais, vapores dérmicos e fluidos genitais.
Aproximei-me com cautela. O Umbigo era bonito, mas assustador. Parecia um minúsculo imperador no seu trono. Respirava ofegante, por baixo de todos aqueles tecidos, cremes e licores, mas parecia absolutamente satisfeito e murmurava uma melodia sem palavras, como se se estivesse a embalar a si próprio.
Chamei-o suavemente:
"Umbigo ..."
Ele respondeu, numa voz lânguida e sonolenta, nasalada e arrastada:
"Sim? ..."
"Venho pedir-te um conselho."
"Diz ..."
"Procuro uma palavra."
"Uma palavra?"
"Sim, procuro a palavra. Sabes qual é?"
"Que palavra procuras tu?", repetiu, enfastiado, como se eu fosse a criança e ele o adulto.
"A palavra que me falta."
"Já procuraste dentro de ti?"
"É isso que tenho andado a fazer."
"Procuras nos sítios errados, então. Tens de olhar melhor para dentro de ti. Conhece-te a ti mesmo. Estás familiarizado com Sócrates?"
"Sim. Mas ..."
"Porventura nas tuas buscas incessantes pensaste neste conceito?"
"Sim. Sim. Tenho feito isso."
"Não. Não mintas. Não estás a procurar bem. Porque vieste aqui importunar-me?"
"Porque quis falar com a altura da minha vida em que fui um umbigo."
"Errado. Estás profundamente errado. O passado não interessa. Eu faço parte do teu passado. Só o presente importa. O aqui e agora. Leste Hume?"
"Li. Li tudo o que há para ler."
"Então qual é a dúvida?"
"Não sei. Estou perdido. Preciso de me centrar."
"A dúvida é a única certeza. Sabes quem disse isto?"
"Descartes."
"Exactamente. Porventura já te interrogaste se não estarás condenado a não encontrar a palavra que tanto procuras?"
"Não pode ser."
"Talvez o sentido da tua vida seja esse mesmo. A busca da palavra, o que não implica necessariamente que a encontres, claro. Até porque, se assim fosse, terias de terminar a tua vida."
"O que queres dizer?"
"Se o sentido da tua vida é a busca dessa palavra, assim que a encontrares deixas de ter uma razão para existires ..."
"E se não for?"
"Se não for ... para quê tanto desespero?"
Reflecti sobre o que o meu próprio umbigo me dizia e não encontrei palavras para lhe responder. Muitas vezes, nesta idade em que achamos que sabemos tudo, momentos há em que somos de facto mais sábios do que jamais seremos, porque não temos medo. Sabia que ele não fazia a mínima ideia do que estava a dizer, eram apenas palavras que juntava daqui e dali, de leituras que eu fizera, de conclusões que eu retirara a partir das palavras de outros. Mas as combinações que eu criava nessa altura da vida eram tão prolíficas e variadas que acabava muitas vezes por acertar, quase como a lotaria da própria vida.
Ele prosseguiu:
"O que é a realidade? O que és tu? Para quê procurar alguma coisa? Conheces a filosofia zen?"
"Talvez porque seja escritor e precise disso. Não sei. Tem que haver um motivo?"
"Se não tem que haver um motivo, se a realidade não existe senão na nossa consciência, como disse Kant, então porque terá de existir uma palavra?"
Abandonei-o. Ele continuou a falar, mesmo depois de eu ter saído, sem dar conta de que ficara a falar para o boneco.
Mas ficara mesmo?
2 comentários:
Um texto muito bem construído.
Obrigada :)
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