segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

MURMÚRIOS DE LISBOA LXXVIII

Amélie Poulain Precisa-se - Parte III
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Ruínas do Convento do Carmo
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Amélie, isto é só para te pôr ao corrente dos últimos desenvolvimentos no reino do surrealismo e pedir-te um conselho.
A filha da senhoria foi buscar uma toalha cor-de-laranja que tinha sido soprada pela chuva para o quintal da maníaco-depressiva. Telefonou. Para avisar que tinha deixado um post-it colado à porta que rezava assim: "A toalha que está caída no seu quintal é minha. Quando puder pode devolvê-la." (!!!!) A maníaco-depressiva chegou a casa, dobrou a toalha cuidadosamente e telefonou à filha da senhoria para a avisar que podia ir buscá-la, se lhe apetecesse. Ela foi. Agarrou na toalha como se fosse uma criança e a maníaco-depressiva uma criminosa perigosíssima por ter quintais onde caem toalhas cor-de-laranja completamente indefesas e desprotegidas.
Depois, a maníaco-depressiva, como possui dentro de si uma pontinha travessa de sadismo, chamou-a quando a outra já ia a fugir para o elevador e obrigou-a a ficar entalada na porta e a responder-lhe a perguntas parvas sobre o prédio e a renda da casa. Supomos que a filha da senhoria, quando regressou ao seu ninho lá em cima, tenha tido que beber um chá de camomila ao mesmo tempo que embalava a sua toalha cor-de-laranja, para se acalmar depois deste encontro imediato forçado com a maníaco-depressiva. É bem feita!
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A porteira reapareceu, Amélie. Ao fim de não sei quantos meses. E acabou por perguntar à maníaco-depressiva aquilo que lhe andava atravessado na garganta desde há 4 anos: "O que é que a menina faz?"
A menina respondeu que escrevia. Que trabalhava numa agência de publicidade. A porteira não percebeu o que era aquilo de agência de pub... (o seu rosto franziu-se quando tentou repetir a denominação) mas registou o facto de a menina escrever (lá está, o Sindrome de Fernando Pessoa aqui num momento bem revelador) com admiração e um certo fascínio nos seus pequeninos olhos azuis curiosos (tradução: quem escreve é logo colocado numa categoria mais elevada, mesmo que só escreva merda ...).
E depois a conversa foi parar a doenças e achaques, como é costume nas conversas com porteiras e prosseguiu da seguinte maneira:
"Sabe, Dona X (não revelaremos o nome da porteira para manter o seu anonimato), o que é pior é quando a cabeça não está bem. A doença de Alzheimer, tenho um medo que me pelo disso. Perder a memória."
"Ah sim, menina. Olhe, o que temos de mais importante é o pensar, o ver e o falar."
"Ah isso falar, Dona X, eu não me importava de ficar sem isso."
A porteira olhou para a menina com os olhos muito abertos.
"Não?!"
"Eu é mais escrever, Dona X. Por isso não me importava nada de perder a fala. Não sou muito faladora. Eu gosto é de escrever."
A porteira riu-se, espantada, e disse:
"Ah então é por isso que a menina ... escreve. Pois."
A maníaco-depressiva não ensinou à porteira um segredo da vida - é que os olhos falam mais que a boca, na maioria das ocasiões, e o que os olhos da porteira lhe disseram foi exactamente isto: Afinal, esta menina não é uma tontinha qualquer. Ela escreve!
Em contrapartida a maníaco-depressiva aprendeu um pedaço de informação preciosa com a porteira (nunca subestimeis a vossa porteira): que quando vai chover os aviões vêm daquele lado de lá e quando não chove, vêm todos do outro lado. A partir daquele dia a maníaco-depressiva nunca mais andou a carregar com guarda-chuvas o dia inteiro para nada, o que é sempre bom.
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Não se sabe se a porteira foi imediatamente contar à vizinhança estas últimas novidades, mas o que é facto é que o rapaz da garagem agora foge da maníaco-depressiva. Em vez de ficar plantado na porta da garagem a ver se lhe consegue arrancar um sorriso, finge que estuda os troféus expostos na vitrine do dono da garagem. Não se sabe se ficou a pensar que a maníaco-depressiva era um ser estranho por não gostar de falar, ou se achou que porque a maníaco-depressiva escreve está num patamar acima do seu, no que concerne a assobios perdidos no ar da rua. O que se sabe é que se ele soubesse que a maníaco-depressiva se está perfeitamente nas tintas para patamares, certamente ficaria espantado. Também se sabe que se ele soubesse que a maníaco-depressiva já lhe desenhou vezes sem conta cada milímetro do seu rosto dentro da sua cabeça, que não fugiria dela para se esconder em vitrines de troféus.
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Entretanto, o biológico ou vegan ou o raio que o parta, não é avistado há meses e quando é, anda demasiado atarefado com frutas e cenouras para grandes cumprimentos. A maníaco-depressiva suspira de alívio. Mas pensa que vem aí a Prima Vera e que os biológicos ou vegans ou o raio que os parta costumam sair mais das suas tocas quando a Prima Vera chega ... Os rapazes de garagem também saem muito das suas tocas quando avistam a Prima Vera, para apreciar a paisagem circundante ...
Amélie, achas que eu devia escrever um poema sobre o rapaz da garagem? Será saudável?
Talvez seja melhor esperar que a Prima Vera chegue ...
Aguardo instruções.
Au revoir.

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