sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

EM BUSCA DE PALAVRAS 94

A Dança da Morte
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No reino animal, quando predador e presa se encontram, estabelece-se uma espécie de ritual. Após desferir o golpe fatídico, o predador fixa os olhos na sua presa e esta retribui o olhar, como se existisse aqui, neste preciso instante, um pedido de autorização para prosseguir e um assentimento para deixar prosseguir com a matança.
O escritor Barry Lopez chama a esta espécie de ritual uma "conversa de morte" - "É uma troca cerimonial. A carne do animal caçado em troca do respeito pelo seu espírito." Acontece entre mamíferos de grande porte, como os lobos, os leões e os tigres, e as suas vítimas.
Decidi chamar-lhe "A Dança da Morte". E pus-me a pensar. Que também os humanos experimentarão uma "Dança da Morte", antes de exalarem o último suspiro. Mas que esta dança é muito diferente da que ocorre no reino animal, sendo que aqui não existem nem predadores nem presas. Trata-se de uma dança privada, solitária que todos os que morrem experimentarão. Uma dança consigo próprios, em que se realizam balanços, se revêem memórias, se tomam decisões e nos despedimos da vida. Esta dança pode ou não ser pacífica, isto é, pus-me a pensar que podemos ou não ir em paz.
Se formos em paz então isso provavelmente significa que atingimos o tão almejado paraíso. Mas há também quem parta, porventura, em desalinho, em desassossego. Recordo todas ou a grande maioria das mortes que presencio no Cinema ou na TV. Mortes esperadas e sempre pacíficas. Mas os filmes têm a horrível tendência para transformar o mundo num cor-de-rosa igual e sensaborão, clinicamente sensato e politicamente correcto. As coisas raramente são assim e, quando são, têm sempre um desarranjo próprio da vida, que fede e nada tem de correcto e que por isso mesmo é infinitamente mais encantador. Na vida real, pensei, haverá certamente uma enorme percentagem de pessoas que nos abandonam em pânico, em angústia, em desespero. E não falo das mortes súbitas, por acidente, crime ou azar. Continuo a falar daquelas para as quais existe um tempo de preparação. Porventura haverá quem nos deixe de forma terrivelmente inquietante, não querendo ir e é-me, é-nos, difícil imaginar o inferno de tal situação. Ir assim poderá ser o tal inferno de que tanto se fala.
Mas no reino humano também existe a "Dança da Morte" exactamente semelhante à do reino animal, estou em crer pela pesquisa que tenho feito. É a dança entre o assassino e a sua vítima, entre o carrasco e o seu condenado. Uma dança em que, sem se pedir autorização para prosseguir, se exala pelo menos um suspiro adicional, quiçá em honra da vítima, antes de se desferir o golpe fatal. Todos os assassinos falam desse momento em que, quando a vítima sabe que vai morrer, é possível ver e sentir a sua constatação, senão a sua aceitação, antes do branco do globo ocular invadir por completo a sua visão.

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