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Takemis fora eficiente, rápido e silencioso. John sabia que podia confiar na sua discrição, mas mesmo assim nem lhe passou pela cabeça pedir a Takemis que lhe descrevesse Emily. Seria uma humilhação demasiado constrangedora, até para si, ou sobretudo para si. O motorista era fiel, mas era homem e não passava de um subalterno. Mesmo que o tivesse ensinado a conduzir quando ainda mal conseguia olhar pelo espelho retrovisor da enorme limusine onde Takemis ia sempre buscar os pais ao aeroporto. Trouxera-lhe três nomes e respectivos dados pessoais:
Sebastião Hesse, 55, Professor de História da Literatura.
Antoine Burgmeier, 38, Professor de Literatura Contemporânea.
Paolo Kazan, 35, Professor de Escrita Criativa.
Era pouco. Ficou a meditar naqueles três nomes a tarde inteira. Hesse, Burgmeier, Kazan. Hesse, Burgmeier, Kazan. Hesse, Burgmeier, Kazan.
Quando ela chegou, os três nomes haviam-se tornado uma espécie de ladainha na sua cabeça e quase os repetiu em voz alta, em vez do habitual cumprimento.
Parecia-lhe distraída? Notara alguma diferença na sua voz? Decerto que havia ali qualquer coisa diferente, quando ela fazia as pausas, sobretudo nas pausas.
Nos dias subsequentes esteve mais atento ainda do que lhe era habitual. Prescrutou a sinfonia de Emily, tentando penetrar-lhe a alma, tentado decifrar todas as pausas, todos os suspiros, todas as palavras, sílabas, letras.
Cada letra adquirira para si, desde a perda da visão, um som muito característico. Descobriu, por exemplo, que era possível atribuir-lhes cores. As letras tinham a sua própria personalidade, como os números para os matemáticos. Por algum motivo, o ser humano precisa sempre de conferir significados lógicos a todas as coisas, mesmo as mais abstractas como as nuvens no céu, ou as sombras numa parede.
O A era claramente amarelo. A letra mais vulgar do alfabeto em qualquer língua. A mais aberta, generosa, alegre, saltitando de sílaba em sílaba, de palavra em palavra, preenchendo todos os espaços vazios com o seu corpo, como o sol ilumina e aquece todas as coisas vivas e faz brilhar todas as coisas mortas.
O B era imperativo, bruto por vezes. Era da cor dos mantos imperiais, um encarnado rico e aveludado, cheio de autoridade e que incutia respeito. O P partilhava esta personalidade.
Já o C era erótico, nascido do fundo da garganta para dar à luz palavras proibidas. Tinha a cor da pele, que percorria o espectro cromático do rosa pálido até ao vermelho sangue.
O D era louco, claro. Soltava espasmos risonhos de quando em vez, logo regressando a uma aparente calma momentânea, para explodir de novo em gargalhadas cristalinas …
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“Tão-somente ter cessado.
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Como se eu pudesse começar
onde cessou a minha voz, eu mesmo
o som de uma palavra
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que não consigo articular.
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Tanto silêncio
para trazer à vida
nesta carne apreensiva, o ribombar
do tambor das palavras
na interioridade, tantas palavras
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perdidas na amplitude do meu mundo
interior, e assim ter sabido
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eu estou aqui.
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Como se fosse isto o mundo.” (42)
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Na sua boca, na boca de Emily, esse maravilhoso e mágico instrumento de vocalização, as letras ganhavam tonalidades iridescentes, misturavam-se com sabores e renasciam como maravilhosas trepadeiras luxuriantes, ondas plenas de vida fervilhante ou arco-íris orquestrados por seres alados. E mais surpreendente do que a obra-prima que ela era, era o facto de ela nem sequer se aperceber de metade do que fazia. A criatura era como uma maravilhosa borboleta tropical, sem consciência da sua beleza estarrecedora, esvoaçando de letra em letra, saltitando de palavra em palavra e deixando atrás de si um fio ténue de frases tecidas por fadas e constituído por milhares de frágeis gotículas transparentes que reflectiam todas as combinações de cores possíveis de imaginar, que transpareciam todas as emoções possíveis de sentir, sem que por um instante da sua efémera vida ela tivesse consciência das catedrais linguísticas que deixava edificadas atrás de si.
Interrompeu o Kafka para a fazer ler poesia. Queria auscultar-lhe o coração e tentar descobrir se ele começara a bater com mais força do que o habitual.
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“Julgada sempre e Condenada por ti
Permite-me esta clemência
Que morrendo possa merecer o olhar
Pelo qual cesso de viver“ (43)
(43) Sem título – Emily Dickinson