sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

EM MINHA CASA, NA PONTA DOS PÉS 26 (cont.)

Capítulo 8. UM DESSES LONGOS E MISTERIOSOS CONCILIÁBULOS
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“Muitas vezes ficava ali deitado, noites a fio, sem pregar olho, a esgravatar o couro horas seguidas. Ou então, não se poupando a esforços, empurrava uma cadeira de braços para junto da janela, trepava até ao parapeito e, apoiado na cadeira, encostava-se à vidraça, como que a recordar a sensação de liberdade que costumava sentir quando dantes olhava pela janela. Na verdade, cada vez via pior em cada dia que passava, mesmo os objectos relativamente pouco afastados; já não conseguia distinguir o hospital em frente, que outrora amaldiçoara pela presença obsessiva, e se não soubesse com toda a certeza que morava na Charlottenstrabe, rua sossegada, ainda que com características citadinas, poderia ter sido levado a acreditar que a sua janela dava para um descampado, no qual o céu cinzento e a terra cinzenta se fundiam indistintamente.” (38)
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Sentia-se já suficientemente à vontade para levantar os olhos da leitura e observá-lo. Sabia que tinha que ter um cuidado extremo para o fazer, porque ele perceberia por uma demora de uma fracção de segundo, ou várias fracções de segundo seguidas e consecutivas, o que se passava. Por isso, instintivamente, adoptara uma técnica comum nos locutores de rádio e televisão que surge naturalmente com a prática – lia mentalmente duas ou três palavras adiantadas às que realmente transmitia com a voz, o que lhe permitia desviar os olhos duas vezes em cada parágrafo, enquanto proferia as palavras memorizadas dessa forma. Era preciso que estivesse absolutamente concentrada naquela tarefa, algo que já conseguia fazer facilmente, abstraindo-se de tudo em seu redor – os sons da casa (que se ouviam pouco naquela divisão), os sons da rua (demasiado sossegada para a distrair), os sons do cão (de tal forma incluídos na sua rotina, que só daria por ele caso o animal tivesse alguma reacção bizarra).
Conseguira, deste modo, ao longo dos dias, ir compondo um quadro da sua pessoa. Ele não era atraente, não no sentido comum do termo. Mas também tinha que descontar o acidente e a prolongada invalidez decorrente, que o haviam certamente transformado num fantasma daquilo que fora. Mesmo assim, conseguia perceber como devia ter sido a sua aparência previamente à tragédia.
Era moreno, o cabelo curto bem aparado, o corte masculino mais comum e que qualquer barbeiro faria em qualquer parte do mundo. Na penumbra constante do canto da sala que ocupava sempre, ainda não conseguira perceber se já tinha cabelos brancos. O rosto era comprido, de ossos salientes e um queixo marcadamente pontiagudo. A barba estava sempre feita e cheirava sempre a Old Spice. Ela conhecia aquele cheiro porque o seu pai também sempre fora fiel à velha garrafa branca com o barco à vela azul. De algum modo, achava que aquele cheiro não se lhe adequava, talvez porque o associava sempre a uma idade mais avançada, mas gostava dele porque lhe trazia recordações da sua infância. Sempre que entrava na biblioteca, o cheiro dele invadia-a de memórias agradáveis de menina que a faziam sentir-se num ninho quente e seguro.
Conseguira chegar à conclusão que a sua idade andaria certamente pelos trintas e muitos, talvez tivesse mais uns dez anos que ela, mais coisa menos coisa. As marcas do rosto assim o sugeriam e a sua tranquilidade também. Percebia-se que era uma pessoa vivida, não apenas pelo que a sua condição monetária proporcionava, mas sobretudo pelos anos em cima das costas. Apesar de tudo, havia nele uma constante atitude embirrenta, quase infantil, que ela não conseguia perceber se estivera sempre lá ou se fora consequência do estado em que se encontrava, que o fazia encarar tudo com uma eterna impaciência latente em todas as palavras que proferia e em todos os gestos que executava. Outra pessoa podia ter classificado esse traço da sua personalidade como característico de um nervoso, mas ela já o conhecia o suficiente para ter a certeza que ele não sofria desse mal.
Não, John não era nervoso ou sequer picuinhas, era pura e simplesmente impaciente. Muito provavelmente porque sempre fora habituado a ter tudo quanto queria, como queria e sobretudo quando queria, sem protestos nem impedimentos. Se vivesse num daqueles filmes de época, John seria aquele tipo de reis que estalam os dedos e de imediato se vêem rodeados de uma dúzia de vassalos prontos a satisfazerem-lhe todos os desejos, por mais ridículos que sejam.
Tinha uma boca de lábios muito finos, que quase desapareciam no fundo de pele morena, e um nariz grande e imponente, mas elegantemente desenhado no meio das maçãs do rosto, sem agredir a totalidade do conjunto das suas feições. Em geral, o seu semblante era agradável, embora nele não existisse nada de particularmente atractivo. Quanto aos olhos, nunca os conseguira observar porque se mantinham persistentemente escondidos por trás dos óculos escuros. Muitas vezes se perguntara se haveria neles alguma característica demasiado repulsiva causada pelo acidente que o fizesse escondê-los, mas concluiu que provavelmente o facto de não poder observar quem o observava o levava a resguardar-se daquela forma e que isso era perfeitamente compreensível e ajustado ao seu carácter.

Johann ergueu a mão, num gesto imperial e ela calou-se imediatamente.

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(38) A Metamorfose - Franz Kafka

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