quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

EM MINHA CASA, NA PONTA DOS PÉS 29 (cont.)

Capítulo 8. UM DESSES LONGOS E MISTERIOSOS CONCILIÁBULOS
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“Fausto:
E agora, aonde vamos?”
Mefistófeles:
- Aonde quiseres,
Para o pequeno e o grande mundo veres.
Ah, que alegria e que proveito
Não tirarás do curso, à borla feito!” (41)

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Fitou-o, apanhada de surpresa, e desejou que ele terminasse o raciocínio, mas ele virou o rosto para a escuridão da janela, encerrando o assunto por ali.
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Nessa noite sentiu-se a desejar ardentemente poder recuperar a visão. Apenas um segundo, pensou e repensou milhentas vezes, repetindo esse pensamento interminavelmente, como uma espécie de oração mágica. Não para vê-la a ela. Não precisava já de a ver. Mas para vê-lo a ele. O professor de literatura. E logo deu por si a pensar em inúmeras outras coisas que nunca considerara e a julgar-se profundamente idiota por nunca as ter pensado e por ter começado a pensá-las nesse momento.
Certamente que a rapariga tinha uma vida, para além daqueles finais de tarde que passava consigo. Apesar de ter quase a certeza que não haveria nada digno de nota, nenhum momento grandioso, nenhum acontecimento terrivelmente marcante, nenhuma decisão, nenhuma visão, nenhum golpe de génio, apesar disso, ela teria uma vida. E por mais insignificante que fosse, não deixava de ser a sua vida, única, irrepetível, exclusivamente dela. A vida de Emily.
Nunca lhe passara pela cabeça que ela poderia ter um namorado, por exemplo. Ou um marido. O seu estado civil era descrito no curriculum como solteira, mas ela podia ter mentido, apesar de lhe parecer que não haveria necessidade nenhuma para o fazer. Mesmo assim, ele não poderia assegurar-se disso sem fazer uma investigação concreta, porque não a conhecia de lado nenhum. Na sua maioria, as pessoas não guardavam muitas surpresas, mas quando isso acontecia os fantasmas escondidos nos sótãos privados de cada um podiam revelar-se surpreendentes. Ele sabia isso por experiência própria, quando trabalhara como advogado. E normalmente era com as menos óbvias que isso acontecia. A vida ensinara-lhe que muito raramente aquilo que parecia correspondia, de facto, à realidade.
Portanto, havia um professor. Que sabia que ela estava a pesquisar Joyce. Teria a criaturazinha recorrido aos seus préstimos para a ajudar a decifrar o embróglio do irlandês? Ou ter-se-ia ele oferecido para essa tarefa, na esperança de receber algo em troca? John também sabia que muito raramente as pessoas se prestavam a ajudar alguém, sem que houvesse uma retribuição em mente, fosse ela qual fosse.
Isto acicatou-lhe de novo a curiosidade em conhecer a sua aparência física. Debateu-se com ela boa parte da noite, caindo várias vezes na estupidez de imaginar uma possível conversa com Clara, em que tentaria dissimuladamente levá-la a descrever a rapariga mas, de todas as vezes que chegava ao fim desse exercício, soltava uma exclamação sussurrada de impotência, concluindo que nunca conseguiria enganar Clara dessa forma.
Portanto, havia um professor. De literatura. Nas suas palavras não houvera qualquer indício que o pudesse ajudar a decifrar-lhe a idade. E, embora qualquer conjectura que pudesse fazer fosse absolutamente inútil, de cada vez que pensava nele, imaginava-o da sua idade, no auge da vida, portanto, cheio de força e vigor, inteligente e dedicado e interessado na sua nova aluna, disposto a entusiasmá-la na leitura de um dos escritores mais interessantes da história.
Dormiu pouco nessa noite. E, quando acordou na manhã seguinte, chamou imediatamente Takemis, o motorista, ao seu quarto, mesmo antes de se vestir. Takemis saiu logo a seguir à conversa com o patrão e só regressou à hora do almoço.
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Claro que quando lhe diziam para ter cuidado com alguma coisa, era quando ela fazia precisamente o contrário. Por isso, aceitou o convite.
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(41) Fausto – Johann W. Goethe

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