segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

EM MINHA CASA, NA PONTA DOS PÉS 25 (cont.)

Capítulo 7. MY SIN, MY SOUL
,g-lgkf
“Até quando é que vais persistir neste arrufo sem sentido?”, Clara nem sequer evitou a resposta propositadamente, empenhada de tal forma em concluir a linha de raciocínio que se dispusera a seguir desde que entrara pela porta dentro.
“Até quando me apetecer. Tens medo da concorrência? Fica descansada, nunca me passaria pela cabeça substituir-te por ela. Falta-lhe a tua deliciosa e requintada perversidade.”
E então Clara não conseguiu suportar mais a raiva que andara a conter durante todas aquelas semanas e explodiu:
“Isto é um absurdo! Em vez de perderes tempo com leituras, devias era começar a fazer a fisioterapia. O que é que pensas que estás a fazer?”
“Isso é comigo, querida Clara. Não te preocupes. Obrigaste-me a viver, mas não me podes obrigar a escolher a forma como vivo. Felizmente ainda tenho discernimento suficiente para decidir isso.”
“A única razão por que ela ainda frequenta esta casa, é porque eu quero.”
“Existem mil e uma maneiras de a fazeres desaparecer, eu sei. Mas também existem mil e uma maneiras de eu fazer com que te arrependas disso. Portanto, querida Clara, reza para que ela nunca decida de sua livre vontade abandonar-nos, porque se isso acontecer eu vou partir do princípio que a responsável foste tu.”
“Alguém tem de te fazer voltar à realidade.”
“O que é que chamas a isto, então? Um sonho? Devias ter-me desligado a maldita máquina, Clara! Não percebes? Em toda a tua vida foste absolutamente perfeita. A casa sempre organizada até ao mais ínfimo pormenor, desde o raio da cor dos cortinados que combina com as flores apanhadas no jardim, cujo aroma, por sua vez, não choca jamais com os tempêros dos delicados rissóis de camarão servidos nas festas do raio que o partam! Ah, claro que não podemos esquecer a muito bem coreografada agenda de eventos, cerimónias, reuniões, encontros e férias programados até à exaustão num malabarismo infernal, capaz de rivalizar com os melhores artistas do Cirque du Soleil, ao mesmo tempo que os papás viajam por esse mundo fora. Ao longo da vida perguntei-me muitas vezes qual dos dois te escolheu. Qual deles teve a última palavra? A mamã, sempre tão atenta ao pormenor ou o papá, com o seu ouvido preciso e infalível? Quem foi, querida Clara? Hmmm? Ou terá sido uma decisão tomada em conjunto, harmoniosamente … claro … deve ter sido isso … o duo genial não poderia ter deixado de o ser na sua mais brilhante composição – a engenhosa e precisa ama, funcionando como um relógio atómico, marcando o compasso da vida do precoce e adorado menino de ouro. E depois … depois destes anos todos a nadar na mais engenhosa perfeição, o que é que foste fazer? Uma borrada sem precedentes. Esqueceste-te de desligar o raio da máquina. E a sinfonia terminou, não com um finale em crescendo do triunfal para o suave nocturno, mas com uma tremenda fífia nojenta – EU!”, a sua voz elevou-se num tom que raiava a histeria, “EU NESTA CADEIRA DE RODAS, SEM VER, SEM ME PODER MEXER, SEM SEQUER PODER BATER UMA EM CONDIÇÕES!!!!!”
“Pára …”, Clara falou quase num murmúrio.
John afundou-se na cadeira, parecendo exausto com o esforço a que os seus pulmões haviam forçado o seu debilitado corpo.
“Pensei que talvez ela te pudesse fazer bem. Ao princípio não. Ao princípio tens razão, desprezei-a. Parecia-me a típica caçadora de fortunas. Tive a certeza absoluta que se iria roçar em ti, esfregar-se sempre que tivesse oportunidade para isso, fazer pouco de ti e que tu nem sequer te aperceberias disso. Mas sobrestimei-a a ela e subestimei-te a ti. Não passa de uma coitada, uma pobre rapariga ansiosa por agradar, enfiada num buraco de pudor e contenção ridículos.”
“Ah, quer dizer que se fosse inteligente, teria toda a legitimidade para se roçar e fazer pouco de mim, é isso?”
Mas Clara pareceu nem sequer notar que ele tinha falado, prosseguindo: “E tu … tu ficaste diferente. Ao longo dos dias, via-te iluminares-te como há muito tempo não te via. E comecei a … suportá-la, aos poucos. Fazia-te bem, tal e qual esse ridículo animal de estimação que daria a vida por ti da mesma maneira que a daria por qualquer reles assassino ou depravado, porque não tem em si a capacidade para discernir. Como ela, que te seguiria até ao fim do mundo, mesmo que a tua voz a conduzisse por um túnel aterrador até à morte mais terrível.”
John tinha agora a cabeça inclinada sobre o peito, os seus olhos encontravam-se cemicerrados por trás dos óculos escuros, atento e surpreendido pela candidez de um discurso inusitado.
“De qualquer das maneiras, não importa se ela não conseguir discernir quem segue. Isso não interessa, porque a única coisa que me interessa é que ela te tem mantido vivo.”
E, tão subitamente como havia entrado e começado a falar, Clara calou-se, como se tivesse ido mais longe do que quisera.
Por longos momentos, os dois permaneceram apenas a tecer o silêncio que se estendia entre eles como um mar imenso, ainda mais profundo que a escuridão que os separara.
“Então porque raio é que a queres daqui para fora?”, quase sussurrou John, como se, mais do que querer uma explicação sobre a vontade da ama, quisesse antes que a sua resposta lhe oferecesse a justificação que ele próprio precisava para a necessidade que tinha de a manter ali.
“Porque sei que ela fará tudo o que lhe pedires.”
E Clara virou-se e saiu da biblioteca, deixando-o com um meio sorriso de estupefacção, satisfação e ao mesmo tempo auto-comiseração nos lábios.

Sem comentários: