Capítulo 8. UM DESSES LONGOS E MISTERIOSOS CONCILIÁBULOS
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Aquele tornara-se o sinal rotineiro que significava o fim da leitura todos os dias e Emily sabia que era também uma forma de ele lhe comunicar silenciosamente que sabia estar a ser observado. Havia um acordo tácito – ela sabia que ele sabia e também sabia que ele sabia que ela sabia que ele sabia, mas que como nunca isso seria mencionado por nenhum dos dois, o podia continuar a fazer, desde que não houvesse qualquer indício óbvio de que o fazia.
“Finnegans Wake foi a última obra escrita por James Joyce.”, avançou, antes que ele tivesse tempo de lhe colocar qualquer questão sobre o assunto.
John abanou a cabeça e Emily considerou esse aceno como um elogio. Implicitamente estava a dizer-lhe que não ficara admirado por ela ter correspondido ao seu pedido e ter feito o seu trabalho de casa, apesar de isso, tal como referira no dia anterior, não fazer parte das obrigações dela como sua leitora particular.
Continuou, o melhor que soube, balbuciando um pouco, mas não se sentindo incomodada por isso:
“Ele … tentou fazer uma experiência com a linguagem. Uma coisa inédita para a época e que hoje em dia ainda é considerado revolucionário.”, fez uma pausa para tentar perceber se ele ia fazer algum comentário mas, como se mantivesse em silêncio, prosseguiu: “Achei … interessante a forma como ele quis representar uma história do mundo e para isso usar mitos e lendas, religiões, arte, um sem fim de coisas que fazem parte da … capacidade do homem representar o mundo para …”, e depois parou porque lhe faltaram as palavras e porque se sentia como um papagaio a repetir coisas mal decoradas.
“Muito bem. Óptimo. Já percebeu porque é que teve uma enorme dificuldade em ler aquilo?”
“Sim. Claro. Não sou a única, aparentemente.”
“Claro que não. O sacana do Joyce é intragável, Emily. Daí a partida.”
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"Com a boca cheia, os gémeos entabulam um desses longos e misteriosos conciliábulos na língua secreta que a família baptizou de eólico. O despertar separou-os por um momento, arrancando-os à confusão do sono. Agora, ei-los que recriam a intimidade gemelar, governando o curso dos seus pensamentos e dos seus sentimentos por meio da troca de sons acariciantes onde, conforme se queira, se ouvem palavras, queixumes, risos ou simples sinais." (39)
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Ela sorriu, aliviada com a sua reacção. Temera que ele fosse demasiado exigente, na avaliação da sua pesquisa.
“Sabe que … é curioso …”, adiantou a medo.
“Sim? …”
“É curioso que tenha escolhido precisamente a que é considerada a maior farsa da literatura, para me pregar uma partida.”
Ele sorriu abertamente e abanou a cabeça.
“Também cheguei à mesma conclusão. Não foi pensado dessa forma, foi apenas a primeira coisa que me lembrei. Mas tem razão. Uma coincidência engraçada, de facto.”
“Já leu o Wake todo?”, referiu-se à obra intencionalmente pelo nome que aprendera ser o seu diminutivo habitual nos círculos literários, para o impressionar.
“Não. Li o suficiente para perceber a forma e algum do conteúdo. Li muitas análises sobre a obra, mas é, como já deve ter percebido pela pesquisa que fez, um livro repleto de milhentos significados, muitos deles obscuros, outros que só um entendimento das matérias que lhe serviram de inspiração pode ajudar a descodificar. É um trabalho hercúleo. Duvido que alguém sozinho e no tempo de uma única vida consiga decifrá-lo na sua totalidade.”
“Sim … o professor …”, parva, parva, parva.
John farejou-a:
“O professor?”
“Sim. O professor de Literatura na faculdade onde trabalho.”
“E o que tem o professor, Emily?”, pareceu notar-lhe uma ponta de cinismo na voz, ou fora impressão sua?
“Bem, ele diz que …”, não lhe vais dizer que ele se ofereceu para te ajudar, pois não?, “… o Joyce é um verdadeiro génio da literatura.”, improvisou à última da hora.
“E tem toda a razão. Mas isso”, soltou um sorriso sarcástico, não se apercebendo de todo da sua quase gaffe corrigida rapidamente, “ninguém desmente. A questão é outra.”
“Qual?”
“Porquê passar dezassete anos da sua vida a trabalhar numa coisa intragável? Essa é a questão. A grande questão, quanto a mim.”
“Mas não é óbvio?”
“O que é que é óbvio, Emily?”
“Finnegans Wake foi a última obra escrita por James Joyce.”, avançou, antes que ele tivesse tempo de lhe colocar qualquer questão sobre o assunto.
John abanou a cabeça e Emily considerou esse aceno como um elogio. Implicitamente estava a dizer-lhe que não ficara admirado por ela ter correspondido ao seu pedido e ter feito o seu trabalho de casa, apesar de isso, tal como referira no dia anterior, não fazer parte das obrigações dela como sua leitora particular.
Continuou, o melhor que soube, balbuciando um pouco, mas não se sentindo incomodada por isso:
“Ele … tentou fazer uma experiência com a linguagem. Uma coisa inédita para a época e que hoje em dia ainda é considerado revolucionário.”, fez uma pausa para tentar perceber se ele ia fazer algum comentário mas, como se mantivesse em silêncio, prosseguiu: “Achei … interessante a forma como ele quis representar uma história do mundo e para isso usar mitos e lendas, religiões, arte, um sem fim de coisas que fazem parte da … capacidade do homem representar o mundo para …”, e depois parou porque lhe faltaram as palavras e porque se sentia como um papagaio a repetir coisas mal decoradas.
“Muito bem. Óptimo. Já percebeu porque é que teve uma enorme dificuldade em ler aquilo?”
“Sim. Claro. Não sou a única, aparentemente.”
“Claro que não. O sacana do Joyce é intragável, Emily. Daí a partida.”
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"Com a boca cheia, os gémeos entabulam um desses longos e misteriosos conciliábulos na língua secreta que a família baptizou de eólico. O despertar separou-os por um momento, arrancando-os à confusão do sono. Agora, ei-los que recriam a intimidade gemelar, governando o curso dos seus pensamentos e dos seus sentimentos por meio da troca de sons acariciantes onde, conforme se queira, se ouvem palavras, queixumes, risos ou simples sinais." (39)
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Ela sorriu, aliviada com a sua reacção. Temera que ele fosse demasiado exigente, na avaliação da sua pesquisa.
“Sabe que … é curioso …”, adiantou a medo.
“Sim? …”
“É curioso que tenha escolhido precisamente a que é considerada a maior farsa da literatura, para me pregar uma partida.”
Ele sorriu abertamente e abanou a cabeça.
“Também cheguei à mesma conclusão. Não foi pensado dessa forma, foi apenas a primeira coisa que me lembrei. Mas tem razão. Uma coincidência engraçada, de facto.”
“Já leu o Wake todo?”, referiu-se à obra intencionalmente pelo nome que aprendera ser o seu diminutivo habitual nos círculos literários, para o impressionar.
“Não. Li o suficiente para perceber a forma e algum do conteúdo. Li muitas análises sobre a obra, mas é, como já deve ter percebido pela pesquisa que fez, um livro repleto de milhentos significados, muitos deles obscuros, outros que só um entendimento das matérias que lhe serviram de inspiração pode ajudar a descodificar. É um trabalho hercúleo. Duvido que alguém sozinho e no tempo de uma única vida consiga decifrá-lo na sua totalidade.”
“Sim … o professor …”, parva, parva, parva.
John farejou-a:
“O professor?”
“Sim. O professor de Literatura na faculdade onde trabalho.”
“E o que tem o professor, Emily?”, pareceu notar-lhe uma ponta de cinismo na voz, ou fora impressão sua?
“Bem, ele diz que …”, não lhe vais dizer que ele se ofereceu para te ajudar, pois não?, “… o Joyce é um verdadeiro génio da literatura.”, improvisou à última da hora.
“E tem toda a razão. Mas isso”, soltou um sorriso sarcástico, não se apercebendo de todo da sua quase gaffe corrigida rapidamente, “ninguém desmente. A questão é outra.”
“Qual?”
“Porquê passar dezassete anos da sua vida a trabalhar numa coisa intragável? Essa é a questão. A grande questão, quanto a mim.”
“Mas não é óbvio?”
“O que é que é óbvio, Emily?”
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(39) Os Meteoros - Michel Tournier
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