terça-feira, 4 de março de 2008

EM MINHA CASA, NA PONTA DOS PÉS 32 (cont.)

Capítulo 9. À BEIRA DA ÁGUA DETEVE-SE
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Mas a rapariga parecia continuar a funcionar exactamente como sempre fizera. A falta que os olhos lhe faziam … Sempre fora um bom observador. Aliás, dos melhores. Era daqueles que parecem embrenhados em tudo menos no objecto da sua observação, o que deixa, por consequência, o dito objecto perfeitamente à vontade para poder ser observado sem obstáculos.
E deu por si a fazer algo que até então nunca lhe passara pela cabeça – amaldiçoar-se pela condução desastrosa daquele dia fatídico. Não se lembrava do acidente. Lembrava-se de ter estado com Teresa na cama a tarde inteira numa sessão contínua de sexo, com intervalos de minutos para recuperar. Depois haviam decidido partir na direcção do Pacífico, sem hora marcada. Nunca tivera avião particular, como alguns dos seus amigos. O acidente dos pais tornara-o avesso a viagens aéreas, mesmo que nunca o tivesse admitido conscientemente, sobretudo as supérfluas e, sempre que podia, preferia viajar de barco ou carro. Demorava mais tempo, mas tempo era algo que não lhe faltava na vida.
Resa aumentara o volume do som assim que assaltaram a auto-estrada e ele carregara no acelerador porque se estava a sentir maior que o mundo, o seu sexo satisfeito até à exaustão em todas as cavidades do corpo dela.
E a partir daí não se lembrava de mais nada. Lembrava-se de se sentir o macho mais poderoso do mundo e logo a seguir de acordar na escuridão total.
Resa morrera imediatamente. Aparentemente haviam chocado contra o rail de separação das faixas, a 280 kms por hora. John furara o vidro da frente e saíra disparado batendo com a cabeça duas ou três vezes contra o rail, em cambalhotas sucessivas que o tinham atirado para o outro lado da auto-estrada. Ficara em coma durante duas semanas e os médicos não alimentavam quaisquer esperanças. Mas, por qualquer prodígio sádico da vida, o seu organismo recuperara lentamente do choque brutal que tinha sofrido e ele acordara uma manhã para encontrar o vazio da escuridão e perceber que não conseguia mexer o corpo da cintura para baixo.
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O professor perseguia-a agora, sempre que havia oportunidade para isso. Emily deixava-o avançar até um certo ponto porque, se por um lado lhe agradava merecer a atenção de uma autoridade respeitada no campus universitário em redor do qual ela gravitava, por outro havia na sua forma de a observar um elemento incomodativo que ela não sabia precisar mas que a deixava com uma sensação desagradável.
Não conseguia perceber como Amanda permitia que eles se aproximassem tanto, sobretudo os mais velhos e decadentes. Pensara que conseguiria imitá-la, mas descobrira que os olhares de Hesse na direcção do seu decote a faziam sentir-se mal, sentir-se de certa forma “violada”, era a palavra que lhe ocorria com mais frequência, apesar dessa palavra lhe parecer excessiva. Quanto mais ele se aproximava, mais incomodada ela ia ficando e mais insegura na sua pretensa atitude sedutora, tanto que se Hesse fosse um pouco mais novo e um pouco menos míope, teria perdido o interesse por ela muito rapidamente, face a este desajuste de personalidade inquietante.
Em vez disso, cada vez a lambuzava de mais perto com as suas moscas varejeiras e cada vez mais o seu bafo quente e enjoativo se aproximava das suas narinas, enquanto Emily ia ficando cada vez mais instruída em Joyce, quer o desejasse ou não. A maioria das vezes refugiava-se nisso, tentando concentrar-se o melhor que podia nas suas palavras para conseguir suportar a sua aproximação. Mas as suas palavras pareciam vazias de sentido, apesar de estarem recheadas de conteúdo e forma. Ele usava palavras tão rebuscadas que, muitas vezes, procurava decorar as que lhe deixavam dúvidas, fazendo notas mentais para as procurar mais tarde no dicionário.
Durante as leituras, observava-o mais atentamente do que nunca e mais tarde dava por si a reflectir sobre coisas que não tinha a certeza de compreender plenamente ou, pelo menos, de conseguir verbalizar. Mas fazia-o, como com os livros que lia em voz alta. No seu quarto ia desfiando palavras, às vezes apenas onomatopeias, ou discursos intermináveis sobre as suas conjecturas, como se ao fornecer som aos seus pensamentos, eles se pudessem de alguma forma materializar e tornar-se mais compreensíveis, como se ao mastigar as palavras, fizesse desabrochar emoções que nem sabia poderem existir.
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Como:
Olha-me
palavras que preenchem tudo
a voz
espírito
viaja dentro de mim
pertence-me
tudo é dito
chaves que abrem as palavras
a forma certa
o mesmo conteúdo

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