quarta-feira, 26 de março de 2008

EM MINHA CASA, NA PONTA DOS PÉS 37 (Cont.)

Capítulo 10. AMAR UMA FLOR
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“Não! Pára com isso. Isto é um trabalho extra.”
“Trabalho extra? A ler livros? Mas que raio de trabalho é esse?”, e finalmente, constatou John com um sorriso ácido, todo o polimento que até aí contivera a raiva do estranho, desvaneceu-se e a sua verdadeira voz escapou-se-lhe num tom acusador, recheado de ciúme, incompreensão e até uma certa brutalidade crua, como se nada mais importasse no mundo naquele momento que aquelas quatro paredes que encerravam esses livros e o seu suspeito proprietário.
“Um trabalho como outro qualquer. Nada que possas compreender, já que nunca na vida pegaste num livro.”
“Pois não. Se calhar porque tenho que ganhar a vida.”
“Isso é típico. Não vale a pena.”, a voz dela acalmara novamente.
“O que é que não vale a pena?”
“Explicar-te porque é que leio.”
“Tenta. A sério. Gostava de perceber.”, a voz do homem também regressou a um tom mais calmo, mas John percebia que era apenas uma máscara mal construída que tentava a todo o custo regressar àquele rosto e àquela voz para o proteger de uma explosão indesejada que, e ele compartilhava esse conhecimento com o estranho, só teria como efeito a fuga da sua presa para mais longe ainda do que já se encontrava.
“Podemos falar sobre isto em casa? Está frio e estou cansada.”, e a sua voz revelou um cansaço mais mental do que físico, como se tivesse desistido de qualquer espécie de argumentação mesmo antes de ter começado a prepará-la.
“O que é que ele tem?”, desta vez o que saiu foi apenas um sussurro desanimado.
“Steve, pára com isso. Este não é o sítio indicado para falarmos sobre isto. Daqui a nada alguém vai abrir aquela porta e pedir explicações.”, o registo fora alterado para um tom quase paternalista, como se a pessoa que estivesse ali à sua frente não passasse de uma criança a quem era preciso explicar pela milésima vez uma qualquer pergunta óbvia.
“E depois? Tens vergonha de mim, é isso?”, a voz dele regressara ao mesmo tom ácido e bruto, pleno de raiva contida e de ciúme ...
“Não, Steve! Queres fazer-me perder o emprego?”
“Não te chega o da biblioteca?”
“Não. Além do mais, eu gosto deste trabalho. É diferente.”
“Diferente como? Que tipo de livros é que ele te pôs a ler?”
“Mesmo que eu te dissesse, nunca irias compreender. Não os conheces!”
“Mas que espécie de livros são?”, insistiu como uma criança embirrenta a quem estivessem a recusar a desejada recompensa.
“Livros! Todo o género de livros. Romances. Científicos. Poesia. Sei lá! Muita coisa.”
“Poesia …”
John sorriu desdenhosamente com a repetição da palavra, naquele tom desconfiado. Sim, Emily, pensou, é típico ...
“Sim, poesia.”
“Mas que espécie de poesia?”
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“Para que ela tivesse um pescoço tão fino
Para que os seus pulsos tivessem um quebrar de caule
Para que os seus olhos fossem tão frontais e limpos
Para que a sua espinha fosse tão direita
E ela usasse a cabeça tão erguida
Com uma tão simples claridade sobre a testa
Foram necessárias sucessivas gerações de escravos
De corpo dobrado e grossas mãos pacientes
Servindo sucessivas gerações de príncipes
Ainda um pouco toscos e grosseiros
Ávidos cruéis e fraudulentos
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Foi um imenso desperdiçar de gente
Para que ela fosse aquela perfeição
Solitária exilada sem destino” (47)
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“Caramba! Onde é que queres chegar, exactamente?”
“Quero saber que tipo de livros lhe lês.”
“Já te disse!”
“Andas metida com ele, é isso?”
Emily soltou uma gargalhada e nesse instante pareceu-lhe ouvir um ruído, mas foi tão ténue que foi abafado pelo som do seu riso.
“Não, não ando metida com ninguém. Eu venho aqui para trabalhar.”
“Andas atrás da massa dele?”
“Chega! Ouviste? Vou para casa.”
E saiu disparada rua fora. Steve deixou-se ficar uns momentos a contemplar a porta da casa branca, depois um ligeiro movimento nos cortinados de uma das janelas do rés-do-chão pareceu despertá-lo e recuou uns quantos passos. Deu meia volta, hesitou mais uns tantos segundos, mas instintivamente concluiu que aquela casa, embora estivesse materializada em pedra diante do seu nariz, pairava num outro universo inacessível. Não conseguia encontrar em si qualquer força para se atrever a transpor a porta, por mais que a sua raiva o impelisse a tal. Limitou-se a seguir Emily, que já desaparecera na esquina lá ao fundo.
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(47) Retrato de uma Princesa Desconhecida – Sophia de Mello Breyner Andresen

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