quinta-feira, 27 de março de 2008

PALAVRAS ESTÚPIDAS 10

Primeiro escreve-se, muito, demasiado, tudo. Depois corta-se.
Aprender a escrever é aprender a eliminar o supérfluo. É o mais difícil. Sobretudo porque amamos o nosso supérfluo. Apenas porque é nosso. Deitar fora o supérfluo produzido por nós, dói. A tendência natural é mantê-lo. Com a idade e os quilómetros de escrita, dói cada vez menos. Com a idade, cada vez se anseia mais por essa fase da escrita, a limagem, muito mais que pela primeira, a da diarreia mental. Com a experiência e a prática, também a diarreia vai sendo cada vez de melhor qualidade.
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Toda a gente sabe escrever. Vejam o lixo amontoado em casa de cada um. Poucos, no entanto, saberão ou desejarão livrar-se do lixo. Escrever é limpar a casa (não o sótão, esse vasculha-se frenetica e minuciosamente), limpar a cabeça, limpar os dedos, limpar a folha. Chegar ao essencial. O essencial de uma ideia. O essencial de uma frase. O essencial de um acto. Nem mais, nem menos.
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Já aprender a ser escritor, é aprender a parar. Outra operação difícil. Aprender a perceber o momento quando a partir do qual tudo se torna, mais uma vez, supérfluo. Porque nunca nada está perfeito e é preciso aceitar isto. E depois mostrar. Um candidato a escritor que não saiba ou não queira mostrar a merda que fez, morreu à partida. Nem começou, sequer. Porque escrever é morrer à frente de alguém. Ou se morre na praia, ou se avança e morre-se em combate. Porque para deixar de escrever merda, é preciso escrever muita merda.
Isto ensinou-me Marlon Brando, o único actor que morria diante da sua audiência em todos os segundos de vida que representou qualquer personagem. Um escritor também é, em certa medida, um actor. Por isso sempre achei que um candidato a escritor pode aprender muito não só dos escritores, como também dos actores. Porque um escritor, como o actor, tem que tentar pensar como os seus personagens, experimentar as mesmas sensações que eles experimentam, para poder torná-los Verdadeiros aos olhos de quem os lê.
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Quem diz escrever, diz todas as outras artes. Qualquer artista tem que estar preparado para morrer em combate. Morrer = correr o risco de se humilhar, de se tornar ridículo, de não ser compreendido. Porque a arte é uma morte pública, impiedosa, chocante. Se não for, nunca foi ou poderá ser arte, são traques mentais. A arte é sofrimento, ou não é nada. Porque para tocar alguém, é preciso que revolvamos as nossas entranhas e as espalhemos à sua frente - "Toma, olha, fui eu que fiz, sou eu, gostas?"
E depois ficamos ali, esventrados, ensanguentados, virados do avesso, em carne viva, à espera de um parecer. Quem olha não imagina, não tem de imaginar, as distâncias que percorremos dentro de nós, as feridas que esgravatámos, as memórias que revolvemos, os quilómetros de Infernos, Purgatórios e Paraísos que atravessámos.
E depois, se o outro diz, encolhendo os ombros "Tá porreiro", desfalecemos de felicidade, porque tudo aquilo que ele não imaginou, nem tem que imaginar, valeu a pena.
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Hoje, no Dia Mundial do Teatro, eu, que vi Marlon Brando esventrar-se tantas vezes à minha frente, quero dizer que não me esqueço do que ele me ensinou e continua a ensinar. Que é preciso não temer o ridículo, na busca do sublime.
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