segunda-feira, 31 de março de 2008

EM MINHA CASA, NA PONTA DOS PÉS 38 (Cont.)

Capítulo 10. AMAR UMA FLOR
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“Andas metida com ele, é isso?”
Emily soltou uma gargalhada.
Nessa altura fechou de novo a janela e ficou a olhar o vazio à sua frente, uma mão ainda segurando um dos cortinados. Deixou-a descair lentamente até repousar no braço da cadeira. Permaneceu assim um bom bocado, congelado no tempo. Depois Wolf regressou finalmente ao seu colo e lambeu-lhe as mãos, como se pressentisse que algo estava menos bem.
Não fora tanto a presença do outro homem que o incomodara, mas sim aquela gargalhada final dela, que ecoou por muito tempo na sua cabeça. Foi ao mesmo tempo uma cascata e uma hecatombe. Nunca a ouvira rir-se daquela maneira. Aliás, até o resto do seu discurso fora proferido num tom muito diferente daquele que conhecia. Porque Emily estava completamente à vontade com aquele homem, fosse ele quem fosse, tendo John concluído rápida e logicamente que não podia ser o tal professor de literatura.
Portanto, havia um outro homem, provavelmente um namorado, na vida de Emily. Um namorado que desconhecia parte da sua aparente nova vida, possivelmente porque vivia longe dela e por isso a tinha vindo visitar. Um campónio, que nunca pegara num livro porque tinha de ganhar a vida e que desconfiava de livros como se se tratassem de artigos proibidos, em cujas páginas os seus utilizadores se viciavam irremediavelmente, como almas perdidas sem salvação possível.

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"Era um prazer queimar.
Era um prazer especial observar as coisas serem comidas, observar as coisas a enegrecerem e a modificarem-se. Com a mangueira de metal nos seus punhos, com essa enorme píton cuspindo o seu venenoso querosene sobre o mundo, o sangue pulsava-lhe na cabeça e as suas mãos eram as mãos de um qualquer maestro extraodinário que conduzia todas as sinfonias ardentes e abrasadoras para reduzir a cinzas as ruinas de farrapos e carvão da História. Com o seu capacete simbólico numerado 451 enfiado na sua sólida cabeça, e os seus olhos tornados chamas laranjas com a visão do que se seguiria, carregou no botão de ignição e a casa explodiu num fogo regurgitante que queimou o céu do crepúsculo em tons vermelhos e amarelos e negros. Deambulou numa tempestade de libélulas. Queria, acima de tudo, como a velha anedota, enfiar o marshmallow num pau na fornalha, enquanto os livros de páginas de asas de pombo esvoaçantes morriam no alpendre e relvado da casa."(48)
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A presença desse homem constituíra apenas a confirmação de algo que, desde que tomara conhecimento do professor, se fora solidificando renitente mas lentamente no seu interior – a vida de Emily. Cuja existência não tinha outra alternativa senão aceitar, apesar de isso contribuir para desmoronar o seu pequeno mundo criado dentro das quatro paredes da biblioteca. Claro que esse mundo privado podia continuar a existir, mas prosseguiria agora para sempre manchado por dados novos, estranhos, invasores. Nada poderia jamais ser igual, depois daquela famigerada frase que ela proferira um dia ...
"Sim … o professor …”
O professor ... o namorado ... a vida de Emily ...
E que diferente soava aquela Emily enfiada na sua vida de sempre ... Uma Emily solta, descontraída, apesar de tensa, com uma naturalidade na voz e de certeza que nos gestos também (John bem se apercebia do cuidado nervoso com que ela manejava a chávena do chá que a empregada lhes servia de vez em quando) que ele desconhecia e que nunca sequer considerara.
E a gargalhada fora a última gota que derramara tudo. Depois da gargalhada não conseguira ouvir mais nada. Se o grito prévio lhe tinha enchido o coração de uma sensação quase doce, aquela gargalhada cristalina derramara-se sobre ele simultaneamente como uma cascata que lhe causou um arrepio agradável e como um balde de água fria. Sabia que a gargalhada ecoaria na sua cabeça até ao dia em que escolhesse morrer, porque ela também acabara com quaisquer dúvidas que tinha sobre a sua morte.
Aquela cascata cristalina podia ter tantas interpretações, que nem sequer perdeu tempo a considerá-las, mesmo sabendo que podia enganar-se. Mas normalmente sabia que o instinto não costumava defraudá-lo. E a primeira sensação que tivera fora a de que a ideia exposta pelo seu interlocutor fora tão absurda, que Emily soltara aquela gargalhada instintivamente e não como uma qualquer estratégia de defesa feminina destinada a desviar as suas suspeitas, como também poderia parecer.
E depois ... foi novamente invadido por pensamentos idiotas como um desejo de lhe provocar uma gargalhada semelhante, noutras circunstâncias e o desejo de que ela se sentisse suficientemente à vontade na sua presença para se soltar daquela maneira …
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Sinto-me nu nu nu de raiva
Detesto-a desejo-a
Quero ouvir-te voltar quero ver-te quero tocar-te quero sentir-te
A voz deixa-me cair na tua voz
Não quero sofrer mais não posso ajuda-me por favor, ajuda-me
Não me puxes não quero a vida não quero!

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porque se sentia perdido e sozinho e cansado de viver daquela maneira.
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Quando nessa noite, Clara irrompeu pela biblioteca dentro no seu passo firme e bicudo, John não se surpreendeu. Já o esperava. Calculava que não tinha sido a única testemunha daquela conversa em surdina à porta de casa.
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(48) Fahrenheit – Ray Bradbury

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