domingo, 16 de março de 2008

EM MINHA CASA, NA PONTA DOS PÉS 35 (cont.)

Capítulo 9. À BEIRA DA ÁGUA DETEVE-SE

Para Emily, foi como se ele a tivesse esbofeteado. De repente, tudo encaixava na perfeição. Fixou-o demoradamente e fez um esforço sobre-humano para não se levantar e lhe arrancar os óculos da cara com uma bofetada. Depois a raiva passou inesperadamente e sentiu-se encolher na cadeira como um verme asqueroso.
Ele nunca simpatizara sequer com ela. Que estúpida! Mas que grandessíssima idiota.
Inesperadamente ouviu a sua própria voz soltar-se, mas era como se pertencesse a outra pessoa completamente diferente …
"Que marca quer? Quantas caixas?"
John levantou o pescoço e inclinou a cabeça para trás com a surpresa.
"Uma caixa de Valium, de vez em quando."
"Porque é que não me pede logo tudo duma vez? Não é para isso que eu aqui estou?"
Desta vez foi ele quem sentiu as suas palavras como uma estalada. A cabeça lançou-se subitamente para trás. Mas conseguiu ultrapassar a surpresa rapidamente.
"Emily …"
Emily soltou uma gargalhada que a voltou a surpreender e a John.
"Não me vai mandar embora assim que tiver o que quer? Estou simplesmente a abreviar o problema. Posso ir a vários médicos e aviar várias receitas em farmácias diferentes. E ficará com um carregamento suficiente para vários… meses …", depois aos poucos a voz foi-se tornando num murmúrio.
John manteve-se em silêncio por alguns momentos. O que ela dizia fazia sentido.
"Muito bem. Eu trato do cheque com o meu advogado e dou-lho amanhã."
Emily permaneceu em silêncio durante muito tempo, sem querer acreditar no que agora lhe parecia demasiado óbvio. Finalmente, disse:
"Quer que eu saia?"
"Sim. Acabamos por hoje."
Emily saiu.
Pela primeira vez teve uma vontade tão forte de correr atrás dela e abaná-la, que as lágrimas lhe caíram pelo rosto mesmo sem dar por isso.
çlkgfçdlk
Ficou acordado toda a noite. Tinha medo de adormecer e de sonhar com ela. Mas quem é que aquela serigaita pensava que era? Não percebia se ela se apercebia do efeito que causava nele. Esquecera-se de que havia tantas emoções. Tinha medo. Medo da esperança que ela lhe trouxera. E, ao mesmo tempo, medo de se tornar ridículo aos seus olhos. Medo de ser alvo de troça entre ela e um qualquer professor de literatura novo, forte, vigoroso e inteligente.
Conseguia até imaginá-los. Os dois na cama, o sexo dele dentro dela, as pernas dela enroladas à volta das coxas dele num aperto primitivo, os dois a rirem-se enquanto ela o imitava e aquele pensamento tornou-se insuportável.
lfdkçldk
Quando ele abordara o assunto, nunca lhe passara pela cabeça que poderia estar a pedir-lhe ajuda para acabar com a sua vida. Mas quando acabara de formular aquela frase, percebera imediatamente que era isso mesmo e não conseguira estar mais tempo na sala com ele.
Era como se, de súbito, toda a atmosfera daquela biblioteca que ela sempre interpretara como acolhedora, tivesse finalmente revelado a sua verdadeira essência – o odor a morte. De repente, toda a sala lhe pareceu impregnada desse odor e Emily percebeu que vivera iludida durante todos aqueles meses.
Não sabia o que fazer. O choque da constatação de que não fora mais que um instrumento durante todo aquele tempo, passara para segundo plano. Deveria dizer à Nº 5? E ela perde a compostura e ainda pensa que eu lhe ando a fornecer droga há semanas, ou qualquer coisa do género. Rapidamente percebeu que essa não era uma opção sequer a considerar. Tinha que resolver o assunto sozinha. Ponderou a possibilidade de abandonar a casa, simplesmente. Mas sabia que ficaria toda a vida com o peso na consciência de não ter feito nada. Porque era fácil para ele arranjar outra cobaia. E ela gostava dele. Apesar de todo o cinismo e sarcasmo. Ela gostava dele. Porque ele olhara para ela … Soltou um riso sarcástico.
Durante a viagem de metro, procurou concentrar a sua atenção nos outros passageiros da carruagem. Não era costume fazer isso. Mas sentia-se sozinha. Perdida. O seu olhar percorreu discretamente as caras que a acompanhavam. Vidas sem sentido, como a dela? Sem esperança, como a dele? Angustiadas. Tristes. Cabisbaixas. Pensativas. Depois reparou num homem que viajava de pé, junto à entrada. Era novo, alto, moreno. Podia ser o antigo John. Os seus olhares cruzaram-se e ele sorriu-lhe com os olhos. Foi estranho. Depois reparou que ele estava a olhar para ela, mas que não a estava a ver. Estava perdido nos seus próprios pensamentos.
"Ou pensa que só porque não vejo não a consigo 'ver'?"

Sem comentários: