quarta-feira, 12 de março de 2008

EM MINHA CASA, NA PONTA DOS PÉS 34 (cont.)

Capítulo 9. À BEIRA DA ÁGUA DETEVE-SE
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“- Senhor Samsa! – exclamou o senhor do meio, e apontou, sem mais uma palavra, para Gregor, que se vinha aproximando lentamente.
O violino calou-se, o hóspede do meio começou por sorrir, abanando a cabeça, voltado para os seus amigos, e depois olhou outra vez para Gregor. Em vez de enxotar Gregor, o pai mostrou-se mais preocupado em começar por acalmar os hóspedes, embora estes não estivessem nada nervosos e Gregor parecesse diverti-los mais do que a música do violino. Precipitou-se para eles, de braços abertos, procurando fazê-los retroceder para o quarto, enquanto ao mesmo tempo se colocava na sua frente e tentava impedi-los de olharem para Gregor.” (45)

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ouviu-se dizer:
“Emily!”
Ela assustou-se e parou bruscamente, a meio de uma frase. Era pouco habitual ele interrompê-la daquela forma brusca, mesmo quando cometia algum erro e ficou a pensar se não teria saltado uma linha inteira, ou qualquer outra coisa mais grave.
“Emily …”
“Sim?”
“Emily …”, Hesse, Burgmeier, Kazan.
Ela piscou os olhos, sem compreender.
“Quer que eu repita?”
"Quero falar consigo."
Sentiu-a pousar o livro no colo e torcer as mãos nervosamente.
"Não vou mandá-la embora, fique descansada."
O facto de ele conseguir adivinhar-lhe os pensamentos daquela maneira, não cessava de a perturbar. Era como se ele tivesse conseguido desenvolver um sexto sentido com a perda da visão.
"Quero pedir-lhe uma coisa."
Ouviu-a respirar, mas depois pressentiu-lhe de novo o nervosismo e esboçou um sorriso.
"Não me diga que andou a falar com a Clara? Não acredite em nada do que ela lhe diz sobre mim."
"A Nº 5 não fala comigo." Trata-me como se eu fosse um verme asqueroso, mas não tem importância. Não é ela quem paga.
"A Nº 5?"
Caramba …. Meteste a pata na poça.
"Deixe-me ver se percebi. Você trata a Clara por Nº 5?"
Hesitou.
"Não é nada … é … é uma coisa minha."
"Emily … detesto não poder partilhar uma boa piada."
Pela enésima vez descobriu que era incapaz de resistir ao seu tom de voz, mistura de autoritarismo com mimo.
"Por causa da roupa. Chanel. O perfume."
John soltou uma gargalhada.
"Estou a ver.", fez uma pausa, "E eu? Sou o Nº 1?"
"Não. É o John."
"Hmmm. Muito bem.", pareceu notar-lhe desapontamento, "Quanto à Clara, pode não concordar, mas digo-lhe que é muito melhor que ela não fale consigo."
Concordo plenamente. E assino por baixo.
"É-me indiferente."
"O que lhe vou pedir é muito simples e não envolve tortura."
Emily remexeu-se na cadeira e John sorriu, mas habituada ao seu sarcasmo, manteve-se silenciosa.
"Eu não preciso de lhe explicar que esta situação é muito desconfortável."
Parou e procurou as melhores palavras. Não lhe queria pedir abertamente nada, mas queria deixar bem claro que era algo importante.
"Dolorosa até. Não parece, mas tenho dores. Nas costas. Às vezes são insuportáveis. Estou a ser medicado mas não chega."
John parou para ver se ela percebia. Emily continuou calada.
"A Clara é muito rigorosa com a porcaria dos comprimidos e … bem … chega até a racioná-los mais do que devia."
Pela primeira vez na vida sentiu uma sensação que nunca antes experimentara, o que o deixou perplexo e irritado - uma sensação de ridículo.
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"À beira da água deteve-se, de cabeça baixa, desenhando com a ponta do pé figuras na areia húmida; entrou então no baixio, que na sua área mais profunda ainda lhe não ultrapassava o joelho, e atravessou-o, avançando indolentemente até ao banco de areia. Aí parou um momento, o rosto voltado para as longuras, começando a percorrer lentamente a língua de areia longa e estreita que o mar descobria. Separado de terra por uma extensão longa de água, separado dos companheiros por um capricho de orgulho, deambulava, visão incomunicável, à parte de tudo e todos, de cabelos esvoaçantes, lá longe no mar, no vento, destacando-se dos horizontes infinitos de bruma. Uma vez mais parou e olhou em sua volta. E, de repente, como que movido por uma recordação, um impulso, girou o tronco e, pousando a mão na anca, numa graciosa inflexão da sua posição original, olhou por cima do ombro para a margem. O observador estava ali sentado, exactamente como naquele dia no hotel em que aquele olhar cinzento de madrugada se voltara na umbreira da porta e encontrara pela primeira vez o seu. A sua cabeça acompanhava lentamente, no recosto da cadeira, o movimento da figura deambulando lá longe; agora erguia-se, como que a receber aquele olhar, e acabou por se deixar cair sobre o peito, de modo que os olhos se levantavam para ver, enquanto o rosto tomava a expressão descontraída e pensativa de um sono profundo." (46)
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(45) A Metamorfose - Franz Kafka; (46) Morte em Veneza - Thomas Mann

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