BARÓMETROS
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Tenho vários barómetros literários.
Não são muitos e se calhar deviam ser mais, mas são os que há. Chateiam-me a cabeça de vez em quando (no bom sentido, leia-se) e consoante as circunstâncias, ou então sou eu que os vou buscar quando preciso de coragem, orientação ou que me dêem na cabeça (no mau sentido, leia-se).
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Por exemplo, o António (Lobo Antunes) serve para me dar estaladas de luva branca sempre que acho que escrevi alguma coisa de jeito. Lá está ele a dizer "Coitada ...", com o mesmo ar cínico-cómico com que disse "Coitado ..." quando numa entrevista lhe disseram que o Saramago tinha dito mal dele. "Coitado ...", respondeu o António e foi a melhor coisa que podia ter dito porque aquele "Coitado ..." dito daquela forma displiciente e desprezível mas com uma dignidade impressionante, teve o condão de esmigalhar o seu auto-proposto adversário num amontoadozinho de cinzas insignificantes (e isto foi depois do Saramago ter ganho o Nobel, veja-se bem o absoluto "estou-me completamente nas tintas para o Nobel dele" implícito naquela palavra).
Portanto, o António olha-me com um desdém misericordioso e suspira-me "Coitada ..." e eu quase que peço desculpa de joelhos à folha de papel, por a ter manchado com tão ignóbil e abjecto lixo.
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Já o Ernest (Hemingway) me repete constantemente numa voz tonitruante (nunca lhe ouvi a voz, mas acho sempre que um americano com aquele corpo enorme e aquelas barbas e aquela propensão para touradas, guerras, caçadas em África e pescarias só pode ter uma voz tonitruante, assim como a do Orson Welles), repete-me constantemente: "Faz pessoas, não faças personagens!!"
dd,kj
O Paul (Auster) avisa-me sempre "Não te esqueças de olhar para os interstícios da vida, aqueles cantos secretos e desviados para onde mais ninguém olha. Levanta a poeira."
dkjldkj
O Fiodor (Dostoievsky) relembra-me que devo prescrutar a alma dos meus personagens até chegar ao âmago do âmago do âmago, esmiuçar tudo até ao infinito, até eu achar que não existe mais nada para esmiuçar e depois empurrar mais um bocadinho e ... oh! ainda lá está mais qualquer coisa.
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O Franz (Kafka) sussurra-me sempre numa voz miudinha e nervosa: "E não esquecer o absurdo. Põe sempre uma pitada de absurdo e de .... kafkiano, a vida está cheia de absurdos."
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E depois há dois que me acompanham sempre, muito mais do que todos os outros. O James e o Fernando. Um irlandês e um português. Dois génios absolutos, cada um à sua maneira.
A primeira vez que li o James (Joyce) tinha uns 16 anos e odiei-o. Fiquei zangada com ele muitos anos. Porque não percebi nada dele. Por volta dos vinte e muitos fui buscá-lo outra vez, a medo, assim naquela de "Deixa cá ver isto outra vez, que chatice. O homem é tão falado que até parece mal." Foi aí que nasceu o amor. Foi muito devagarinho e ainda está a crescer. As coisas boas é assim, são difíceis, dão luta.
O James ainda não fala comigo. Está tão lá em cima, mas tão lá em cima, tão distante, noutro universo, que nem sequer me fala. Mesmo na minha imaginação eu sou assim uma espécie de insecto irritante para ele. Nem sequer sou irritante, porque isso seria admitir que ele tinha visto que eu estava ali a bzzzzrourar. Lá do alto ele olha em frente e é tipo um tecto duma Capela Sistina da escrita para mim. Sempre que penso nele penso assim: "Então, mas se ele existe e fez aquilo, para que é que andas a perder tempo? Não vale a pena."
Ele serve para testar a minha tenacidade e teimosia. E eu, como tenho uma pinga de sangue irlandês, continuo a insistir, tipo os terroristas do IRA que já andam naquilo há mais de 300 anos e ainda não desistiram. É a sina do sangue irlandês ...
kldjdlk
Só que depois vem o Fernando ajudar-me. O Fernando (Pessoa) é o meu anjo. Ele também escreveu tudo o que havia para escrever. E depois dele já não há nada para dizer. Mas ele diz-me sempre assim: "Mas olha, escreve. Escreve. Escreve. Escreve. Não te importes com o resto. Escreve."
E eu escrevo. O que é que eu vou fazer? Também não sei fazer mais nada ...
djhkjd
1 comentário:
Bem me parecia que andava muito bem acompanhada e que gostava de culinária: a receita não poderia ser melhor. Tem todos os ingredientes. Só tem um pequenino senão - há sempre o raio de um senão - é que a minha pessoa (não personagem) também se sente desta forma totalmente insignificante e dispensãvel. Já sei! Resta-me dar-lhe na cabeça (mas leia-se: no bom sentido). Espero que sirva .)
XinXin
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